Arquivos Diários : junho 8th, 2020

Quando o Ministério Público investiga e acusa mal, todos perdem

Por Alexandre Morais da Rosa e Rômulo de Andrade Moreira

A superação da presunção de inocência em face da determinação dos fatos de maneira clara, profunda e madura, exige que os agentes da lei exerçam as possibilidades de corroboração da hipótese inicial e, também, das excludentes de responsabilidade indicadas pela defesa. A investigação deve suplantar o standard probatório [1] mínimo, agindo de modo a não dispensar qualquer linha argumentativa provável, sob pena de perder uma chance de defesa [2]. Excluído o fantástico, o deve ético aponta para novas diretrizes. Quando se investiga e acusa sem a devida diligência, todos perdem. Foi o que aconteceu recentemente no Chile.

A Suprema Corte do Chile, mantendo uma decisão proferida pela Corte de Apelaciones de La Serena, condenou o Estado a pagar uma indenização de cem milhões de pesos a Alejandro Humberto Navarro Alcayaga, acusado pelo Ministério Público, temerariamente, de praticar o crime de apropriação indébita, previsto nos artigos 467 e 470 do Código Penal chileno. A decisão foi proferida nos autos Rol nº 12.505-2019 e acolheu o pedido do autor, reconhecendo-se-lhe o direito a uma justa indenização pelos prejuízos decorrentes de uma verdadeira “responsabilidade extracontratual” reconhecida ao Estado, a partir de um erro manifesto na atuação do Ministério Público desde a investigação criminal até a acusação formal [3].

No caso concreto, Alejandro Alcayaga, após ser formalmente acusado pelo Ministério Público, foi finalmente absolvido pela Justiça criminal, em julgamento realizado no dia 31 de agosto de 2010, perante o Tribunal de Juicio Oral en lo Penal de La Serena por ausência de provas de que ele, efetivamente, houvera praticado o delito. Aliás, conforme se verá adiante, não havia mesmo nem sequer indícios de prática do delito de apropriação indébita.

Segundo a vítima do erro, o Ministério Público teria agido de maneira negligente durante a prática dos atos de investigação criminal, deixando de realizar diligências essenciais para o perfeito e necessário esclarecimento dos fatos, tais como:

1) Não levou em consideração a declaração do acusado prestada antes mesmo do julgamento oral;

2) Não fez a entrega de uma cópia dos autos da investigação criminal à defesa, com antecedência necessária para a elaboração da tese defensiva, impossibilitando o exercício pleno da defesa e fazendo tabula rasa da paridade de armas, próprio do sistema acusatório; e

3) Não investigou acerca da existência de uma segunda conta corrente da instituição que ele (o então investigado) representava, diligência investigatória que, se houvesse sido feita, demonstraria a inexistência da tipicidade naquele caso penal.

Segundo o autor da ação civil, se tais diligências preliminares tivessem sido providenciadas pelo órgão da acusação/investigação, certamente teria sido evitada a continuidade da persecução penal e ele não teria sofrido os dissabores de ordem financeira e moral que efetivamente viria a sofrer.

Com efeito, demonstrou-se na ação que o autor, negligentemente investigado e injustamente acusado pelo Ministério Público, arcou com evidente prejuízo material, pois ficou impedido de exercer livremente a sua profissão, além de ter perdido a sua função de superintendente do Corpo de Bombeiros de Coquimbo, o que reduziu substancialmente os seus rendimentos [4]. Ademais, também suportou um grave prejuízo de ordem moral, em virtude de críticas públicas de que foi vítima, do escárnio geral a que foi submetido, da desconfiança que passou a sofrer da comunidade, além do sofrimento causado à sua família, especialmente esposa e filhos.

Na decisão, os juízes da Suprema Corte citaram expressamente o artigo 5º da Lei nº 19.640, segundo o qual o Estado será responsável pela conduta injustificadamente errônea ou arbitrária do Ministério Público e, quando se comprovar culpa grave ou dolo, o Estado terá direito de regresso em relação ao funcionário ou ao membro do Ministério Público responsável pelo ato danoso [5]. Observaram, ademais, que a referida disposição legal coincidia com a norma constitucional chilena que trata da responsabilidade do Estado pelo erro judiciário, contida expressamente no artigo 19, § 7º, alínea “i”, que reconhece a obrigação do Estado chileno de reparar os danos patrimoniais e morais sofridos por alguém que foi processado ou condenado em qualquer instância, de maneira injustificadamente errada ou arbitrária (assim reconhecida pela Corte Suprema), tendo sido, posteriormente, absolvido definitivamente; o valor a ser pago, a título de indenização, será determinado judicialmente em um procedimento breve e sumário [6].

Vê-se, portanto, que as expressões utilizadas pelo legislador ordinário chileno para estabelecer a responsabilidade do Ministério Público coincidem com as disposições normatizadas pela Constituição da República que tratam da responsabilidade civil decorrente do erro judiciário.

Os juízes chilenos da Suprema Corte consideraram que a absolvição do acusado decorreu, especialmente, da falta de adoção de devidas diligências investigatórias mínimas e essenciais para o êxito da apuração criminal, como, por exemplo, a demonstração de efetivo prejuízo para a vítima e a comprovação da prática do delito de apropriação indébita por parte do acusado, elementos indispensáveis e necessários para a configuração da figura típica prevista e sancionada nos artigos 467 e 470 do Código Penal chileno.

Por fim, considerou que o promotor encarregado da investigação agiu com culpa grave, omitindo-se na tomada das precauções mais básicas de uma investigação criminal, deixando, inclusive, de prever o que um investigador moderadamente diligente teria previsto, conduta que resultou em um processo criminal injustificadamente errado, acarretando o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado.

O exemplo demonstra a importância de que o exercício da ação penal seja baseado em evidências adequadas, jamais aceitando-se o acusar para ver no que pode dar, justamente porque se pune o acusador aventureiro que, ao fim e ao cabo, prejudica o Estado, que paga a indenização, o acusado, que não restitui seu status quo ante e fulmina a carreira e o patrimônio de um agente ministerial desidioso.

Mas serve de exemplo do que deveria acontecer em face de acusações frívolas, abusivas e desprovidas de suporte fático mínimo, em que o palpite do agente não serve para suportar acusações democráticas e justas.

*Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

**Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da faculdade de direito da Universidade Federal Salvador (Unifacs).

 

[1] MATIDA, Janaina; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Para entender standards probatórios pelo salto com vara. https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/limite-penal-entender-standards-probatorios-partir-salto-vara. Acesso em 31 de maio de 2020.

[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2020, onde desenvolve a perda de uma chance probatória.

[3]https://www.pjud.cl/documents/396543/0/DEMANDA+MINISTERIO+PUBLICO+LA+SERENA+SUPREMA.pdf/. Acesso em 31 de maio de 2020.

[4] Coquimbo é uma cidade portuária da quarta região, capital da Província de Elqui, no Chile.

[5] No Brasil, constitui crime de abuso de autoridade, “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”, segundo prescreve o artigo 30 da Lei nº. 13.869/19. E o artigo 5º., LXXV, da Constituição, estabelece que “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”. Em complemento, o artigo 37, § 6º, também da Constituição, prevê que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

[6] A norma constitucional também faz referência, além da sentença absolutória, ao sobreseimiento definitivo, ou seja, uma decisão que, sem julgar o mérito propriamente dito, põe fim ao processo, definitivamente, por falta de elementos que permitiriam a aplicação da norma penal ao caso concreto, de modo ser desnecessário seguir adiante para a fase do juicio oral.

Infâncias negras importam: a luta antirracista deve ser de toda a sociedade

Por Ana Lúcia Stumpf González e Elisiane Santos* 

No Brasil atual, parte da elite dominante, branca, continua a dispor dos corpos negros, de forma desumanizada, no serviço doméstico

A morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, ocorrido no Recife, revela a face mais cruel do racismo no Brasil: a desumanização das infâncias negras. O filho da trabalhadora caiu do nono andar do prédio em que a mãe trabalhava, ao ser negligenciado pela empregadora, aos cuidados de quem fora deixado enquanto a mãe cumpria a tarefa de levar os cães da patroa para passear.

O episódio revela o racismo estrutural, que perpetua e aprofunda desigualdades sociais-econômicas na sociedade brasileira.

Passado mais de um século da abolição da escravidão, os detalhes presentes no episódio trágico e inaceitável nos remetem a cenários do período colonial, em que sinhás se utilizavam dos corpos negros das mucamas, para que estas realizassem, de forma subalterna, as mais variadas atividades afetas aos cuidados e caprichos daquelas, como arrumar cabelos, roupas, preparar e servir refeições, acompanhá-las em passeios. Os filhos dessas mulheres negras também tinham seus pequenos corpos explorados e desumanizados, servindo de brinquedo, das formas mais humilhantes, para os filhos dos senhores, além de serem utilizados no trabalho doméstico e na lavoura.

No Brasil atual, parte da elite dominante, branca, continua a dispor dos corpos negros, de forma desumanizada, no serviço doméstico. Enquanto a trabalhadora cuida do cão da empregadora, o seu filho, criança negra, é ignorado e deixado num elevador à própria sorte. E tudo isso ocorre num cenário de pandemia, causada por um vírus, que já provocou a morte de mais de 30 mil pessoas no país, sendo a única medida eficaz para a contenção desse vírus letal o isolamento social. Nesse país, em que deveria ser assegurado aos trabalhadores o direito de afastamento de atividades laborais presenciais, uma empregada doméstica é demandada a prestar serviços de cuidados de um cachorro, em detrimento do cuidado de sua própria família, na sua residência, onde deveria estar de forma protegida.

Fica claro que o trabalho doméstico por aqui segue marcado pelo racismo sedimentado nos quase 400 anos de escravização da população negra. É uma atividade laboral realizada por mais de 6 milhões de pessoas (Pnad 2019, IBGE). Somos o país com maior contingente de trabalhadoras domésticas, 80% realizando limpeza dos lares brasileiros. Desse total, 92% são mulheres e mais de 4 milhões são negras. Ou seja, quase 70% são trabalhadoras negras. Apenas 20% está formalizada, o que significa dizer que a grande maioria trabalha sem proteção social e sem direitos trabalhistas assegurados.

É certo que parcela dos empregadores reconhece o valor social desse trabalho e a dignidade das trabalhadoras, assegurando os direitos trabalhistas que lhe são devidos – mera obrigação legal – assim como os direitos fundamentais ao respeito, honra, dignidade humana, como deveria ser em qualquer relação de trabalho. Mas a grande maioria, não. Prova disso, é a quantidade imensa de pessoas na informalidade, prestando serviços de forma precária e que agora, na pandemia, estão sem sustento.

A desvalorização do trabalho doméstico é um fenômeno que envolve também estereótipos de gênero, e precisa ser analisado como parte da conformação social capitalista (sem o trabalho doméstico ou trabalho reprodutivo, não é possível a manutenção do sistema). No caso brasileiro, o fator racial é determinante, e o trabalho doméstico precário e mal remunerado tem rosto de mulher negra periférica. São essas mulheres que continuam a realizar o serviço nas residências das mulheres brancas, por isso tão importante também a reflexão sobre feminismo negro, para se entender como os marcadores raciais incidem de forma mais violenta sobre as mulheres negras, em relação às não-negras.

Somente no ano de 2013, a partir da Emenda Constitucional n. 72, tivemos reconhecida na legislação a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais, o que veio a se consolidar em 2015, com a edição da Lei Complementar 150, ainda bastante descumprida. É de se recordar que houve contundentes protestos por parte de empregadores, que não viam nada de errado em “remunerar” o trabalho apenas com moradia e alimento.

Não há, pois, como negar que o não reconhecimento e efetivação dos direitos mais fundamentais às trabalhadoras domésticas decorre do cruel processo de formação da sociedade brasileira, que ao longo de séculos torturou, escravizou e desumanizou pessoas negras, perpetuando os efeitos desta violência até os nossos dias, ainda que, ao longo dos anos –  e desde o período de escravização, com a luta dos negros e negras -, a ação dos movimentos negros venha combatendo e resistindo a todas essas formas de opressão.

Essa perversidade se reproduz também no trabalho infantil doméstico. No ano 2015 eram 257 mil crianças trabalhando em lares brasileiros, 90% meninas e 70% negras, trabalho este proibido na legislação brasileira, que estabelece a idade mínima de 16 anos para o trabalho em geral e 18 anos para trabalho insalubre, perigoso ou noturno (artigo 7º, XXXIII, CF). O trabalho doméstico é um desses trabalhos considerado perigoso, proibido para pessoas com menos de 18 anos, mesmo assim, meninas negras continuam sofrendo essa violência, trabalhando em casas de sinhás contemporâneas.

Não é mera coincidência que mães e filhas perpetuem esse ciclo. No caso de Miguel, sua mãe e avó trabalhavam na residência. Muitas situações de trabalho infantil iniciam no contexto em que o menino Miguel foi vítima. Por não terem com quem deixar os filhos – situação agravada no cenário de pandemia, em que escolas e creches não estão funcionando -, as mães são obrigadas a levá-los para o trabalho, e, nessa situação, terminam eles também trabalhando. A tragédia ocorrida nesse mês de junho, marcado pelo Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil (12), nos traz também a reflexão para as tantas crianças negras vulneráveis à violência, da exploração no trabalho doméstico, que, não por acaso, consta na lista das piores formas de trabalho infantil (Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, publicada pelo Decreto Presidencial 6481/2008).

A violência praticada contra Miguel, e tantas crianças negras, é a naturalização de um não lugar de criança, introjetada na sociedade pelo racismo sistêmico, que atua no agir com negligência, descuido, indiferença, desumanização dos pequenos corpos negros. Isso ocorre em relação às crianças em situação de rua, no trabalho infantil, em diferentes espaços sociais, e também em relação aos filhos – negros – das empregadas domésticas.

A empregadora da mãe de Miguel não viu nele uma criança assustada por estar longe da mãe num ambiente estranho, não se sensibilizou com a sua fragilidade de criança, nem tentou minimamente lhe assegurar proteção – responsabilidade esta que é de todos: Estado, família e sociedade, conforme prevê o artigo 227 da nossa Constituição, que exige mais, impondo a todos responsabilidade por proteção integral. Muito provavelmente, não seria esse o tratamento dispensado aos seus próprios filhos, ou amigos de seus filhos.

A visão turvada pelo racismo, que não permite ver na criança negra uma criança, faz com que estas sejam vítimas de ações policiais, com resultados fatais, no nosso cotidiano. Nos últimos dias, vivenciamos, no Brasil, o assassinato de João Pedro, menino negro, 14 anos, dentro da própria casa. São inúmeras mortes apenas este ano. Não é possível continuarmos convivendo com esta situação. Em pesquisa realizada pelo UNICEF, na cidade de São Paulo, nos anos de 2014 a 2108, foram identificadas 580 mortes de crianças, por ação policial, uma média de 12 mortes ou assassinatos ao mês. Esses números são ainda mais elevados quando consideradas outras causas de mortes, como, por exemplo, acidentes decorrentes de trabalho infantil.

Nossas crianças negras estão morrendo. E isso não é acidente. É interrupção de sonhos. É negação do direito à vida. Seja pela ação do Estado, seja pela ação negligente ou indiferente de qualquer pessoa. Não podemos silenciar, nem conviver com o racismo.  Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, ensina Ângela Davis. Nenhuma luta por direitos, democracia, igualdade na sociedade brasileira será efetiva se não estiver centrada no combate ao racismo.

E isso perpassa por reconhecer e combater esse racismo estruturado nas instituições, nas relações sociais, e dentro de cada um, no seu cotidiano. Essa luta tem que ser de todos. Infâncias negras importam. Não basta afirmar ser antirracista, é preciso mudar essa realidade no dia-a-dia.

Por Miguel Otávio. LUTO. Por João Pedro, Jenifer Gomes, Kauan Peixoto, Kauã Rozário, Pedro Gonzaga, Kauê Ribeiro, Águatha Félix, Kethellen de Oliveira e tantas outras crianças. Por JUSTIÇA.

 

*Ana Lúcia Stumpf González é Procuradora do Trabalho. Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

 

Ministério Público da Cidadania: um projeto traído?

Coletivo Transforma organiza live com o Professor José Geraldo de Sousa Júnior

O Coletivo Transforma MP está promovendo o debate com a com a Promotora de Justiça do MPDFT e integrante do Coletivo Transforma MP, Alessandra Queiroga e o Professor José Geraldo de Sousa Júnior para debaterem a atuação situação do Público da Cidadania.

José Geraldo de Sousa Júnior é Professor Titular da Faculdade de Direito da Unb, ex-reitor da Unb e Coordenador do Direito Achado na Rua.  

O Jurista e as Forças Armadas

Artigo de Rômulo Moreira* no GGN 

“As Forças Armadas são convocadas para garantir a lei e a ordem, e não para rompê-las, já que o risco de ruptura provém da ação de pessoas ou entidades preocupadas em desestabilizar o Estado” 

Muito se disse nestes últimos dias acerca de as Forças Armadas brasileiras servirem como uma espécie de anteparo para crises institucionais graves, inclusive, prestando-se como se fora um quarto poder da República, um saudoso Poder Moderador, digamos assim.

Escreveu, por exemplo, um conhecido e renomado jurista paulista que “se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante.” Então, complementou: “É que também se o conflito se colocasse entre o Poder Executivo Federal e qualquer dos dois outros Poderes, não ao Presidente, parte do conflito, mas aos Comandantes das Forças Armadas caberia o exercício do Poder Moderador.” (grifei, mas o destaque em caixa alta consta do texto original).[1]

Este mesmo jurista, no entanto, já escrevera outrora, que “as Forças Armadas são convocadas para garantir a lei e a ordeme não para rompê-las, já que o risco de ruptura provém da ação de pessoas ou entidades preocupadas em desestabilizar o Estado.”[2] (grifei).

Ora, defender a tese de que as Forças Armadas seriam, em última instância, a garantia para a institucionalidade brasileira é, rigorosamente, sustentar que elas – Exército, Marinha e Aeronáutica – poderiam, justamente, romper a lei e a ordem democrática quando bem assim o entendessem os Comandantes das Forças Armadas; ou seja, é como se dissesse hoje o que houvera desdito ontem, não se sabendo exatamente bem o porquê.

Advogar uma tal tese, de todo enviesada, é perigosamente assumir o risco (normalizando-o) de uma ruptura ilegítima na estabilização do Estado, posição inadmissível para um jurista que tenha um verdadeiro e genuíno compromisso com o Estado Democrático de Direito. Vê-se, ademais, a falta de coerência jurídica com o texto mais recente.

A propósito, e como diz Cioran, não se pode ser um “pensador de ocasião”, afinal “aquele que pensa quando quer não tem nada a dizer-nos: está acima, ou melhor, à margem de seu pensamento, não é responsável por ele, nem está em absoluto comprometido com ele, pois não ganha nem perde ao arriscar-se em um combate em que ele mesmo não é seu próprio inimigo.”[3] (grifos no original).

Apenas para relembrar, no Brasil já houve realmente o Poder Moderador, durante o Império, constituindo-se então em um verdadeiro quarto poder, impondo-se absoluta e autoritariamente sobre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo; e não coexistindo com eles, como ainda insistem alguns.

Ocorre que, para isso, havia uma expressa disposição constitucional constando que “o Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.”

Note-se que naquele período da história brasileira, a pessoa do imperador (quem exercia constitucionalmente o Poder Moderador) era “inviolável e sagrada, não estando sujeito a responsabilidade alguma.”[4]

Aquela previsão constitucional, concebida originariamente pelo francês Clermont-Tonerre e, depois, desenvolvida por Benjamin Constant (que a considerava “uma maravilha para as monarquias constitucionais”[5]), foi fruto, como se sabe, de um verdadeiro golpe de Estado dado pelo imperador D. Pedro I que, não satisfeito com as ideias que estavam sendo elaboradas pelos constituintes, liderados pelos irmãos Andradas (concepções políticas um tanto quanto liberais para um autocrata como ele era), determinou a dissolução da Constituinte, o cerco da Assembleia por centenas de soldados (as Forças Armadas de então) e a prisão de vários parlamentares, impondo-se pelas forças das armas a vontade imperial.[6]

É bem verdade que esta tese jurídica (autoritária) serve-se do art. 142 da Constituição Federal, segundo o qual as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República (e não dos seus respectivos Comandantes), destinando-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

(Certa vez, numa entrevista, o general Leônidas Pires Gonçalves, defendendo o que ele chamava de revolução, afirmou que as Forças Armadas, quando golpearam o Estado brasileiro em 1964, fizeram-no “pelo ideal democrático”, e que nunca tinha visto “outra ideia vigente a não ser a da democracia”).[7] Eis o perigo, as boas intenções!

Convenhamos que nem o mais criativo intérprete deste artigo constitucional seria capaz de extrair do seu texto uma interpretação que desse às Forças Armadas brasileiras a possibilidade de atuar como uma espécie de Poder Moderador (assim mesmo, com letras maiúsculas, como fez questão de escrever o jurista)Cogitá-lo é flertar com o autoritarismo e com a solução violenta para as crises que afetam, por vezes, a democracia e as suas instituições.

Como afirma Schwarcz, não podemos aceitar “a manipulação do Estado, de suas instituições e leis, visando perpetuar o controle da máquina e garantir um retorno nostálgico aos valores da terra, da família e das tradições, como se esses fossem sentimentos puros, imutáveis e resguardados.”[8]

Admitir que numa República um poder “sinta-se atropelado por outro”, de uma tal maneira que um “quarto poder” seja obrigado a intervir (por meio de violência, já que, afinal, trata-se de forças armadas), é negar a própria ideia de Estado Democrático de Direito, expressada logo no art. 1º. da Constituição, além de desconhecer substancialmente a teoria da tripartição de Poderes, também referida no início de nossa Constituição: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2º.).

A propósito, escreveu Montesquieu: “é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele. Vai até encontrar os limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites. Para que não possam abusar do poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder.”[9]

A solução para a crise institucional que vivemos tem que vir não das Forças Armadas, mas dos próprios mecanismos constitucionais postos à disposição do povo brasileiro para a garantia da normalidade democrática; e o papel de um jurista, numa democracia, definitivamente, não é semear a dúvida, flertar com o autoritarismo, bajular o poder, comprometer-se com o regresso, mas, ao contrário!, interpretar as normas constitucionais sempre tendo em vista os princípios e os valores que emanam de suas próprias disposições.

Para concluir, transcrevo uma genial crônica de Lima Barreto:

“Estes malucos têm cada ideia, santo Deus! Num dia destes, no Hospital Nacional de Alienados, aconteceu uma que é mesmo de tirar o chapéu. Contou-me o caso, o meu amigo doutor Gotuzzo, que me consentiu em trazê-lo a público, sem o nome do doente – o que farei sem nenhuma discrepância. Havia na seção que esse ilustre médico dirige, um doente que não era comum. Não o era, não pela estranheza de sua moléstia, uma simples mania, sem aspectos notáveis; mas, pela sua educação e relativa instrução. Com bons princípios, era um rapaz lido e assaz culto. Faia parte da Academia de Letras da Vitória, Estado do Espirito Santo, onde residia – como membro extraordinário, em vista ou â vista de vaga, isto é, membro externo, ou de fora, que espera a primeira vaga para entrar. É uma espécie de acadêmico muito original que aquela academia criou e que, embora se preste à troça, lembre cousas de bebês, de cueiros, do Manequinho da Avenida, e outras muito pouco elegantes, oferece, entretanto, efeitos práticos notáveis. Atenua a cabala nas eleições e evita sem-vergonhices e baixezas de certos candidatos. Lá, ao menos, quando há vagas, já se sabe quem vai preenchê-la. Não é preciso mandar organizar um livro, às pressas… A denominação, na verdade, não é lá muito parlamentar; a academia capixaba, porém, a perfilhou, depois de proposta pela boca de um dos mais insignes beletristas goianos que nela têm assento.

O doente do doutor Gotuzzo, como já disse, era membro de fora da academia capixaba; mas subitamente, com leituras dos “Comentários à Constituição”, do doutor Carlos Maximiliano, enlouqueceu e foi para o hospital da Praia das Saudades. Entregue aos cuidados do doutor Gotuzzo, melhorou aos poucos; mas tiveram a imprudência de lhe dar, de novo, os tais “Comentários” e a mania voltou-lhe.

Como ele gostasse do assunto, o doutor Gotuzzo mandou retirar do poder dele a profunda obra do doutor Maximiliano e deu-lhe a do Senhor João Barbalho. Melhorou a olhos vistos. Há dias, porém, teve um pequeno acesso; mas, brando e passageiro. Tinha pedido ser levado à presença do alienista, pois queria falar-lhe certa cousa particular. O chefe da enfermaria permitiu e ele lá foi ter, na hora própria. O doutor Gotuzzo acolheu-o com toda a gentileza e bondade, como lhe é trivial:

– Então, o que há, doutor?

O doente era como todo brasileiro, bacharel em direito ou em ciências veterinárias; mas pouca importância dava à carta. Gostava de ser tratado de capitão – cousa que não era nem da defunta Guarda Nacional, sepultada, como tantas outras cousas, apesar da Constituição. Apareceu calmo e sentou-se ao lado do alienista, a um aceno deste. Interrogado, respondeu:

-Preciso que o doutor consinta que eu vá falar ao falar ao diretor.

– Para quê? Para que você quer falar ao doutor Juliano?

– É muito simples: quero arranjar um emprego. Dou-me muito com o doutor Marcílio de Lacerda, senador, que foi até quem me fez membro de fora da Academia da Vitória; e ele. Naturalmente, há de se interessar por mim.

– Escreva ao doutor Marcílio que ele virá até aqui.

– Não me serve. Quero ir até lá; é muito melhor. Por isso, preciso licença do doutor Juliano.

– Mas, um caro, não adianta nada o passo que você vai dar.

– Como?

– Você é doente, sua família já obteve a interdição de você – como é que você pode exercer um cargo público?

– Posso, pois não. Está na Constituição: “Os cargos públicos civis, ou militares, são acessíveis a todos os brasileiros. “ Eu não sou brasileiro? Logo…

– Mas, você…

– Eu sei; mas as mulheres não estão sendo nomeadas? Olhe, doutor: mulher, menor, louco, ou interdito, em direito tem grandes semelhanças.

Tanto insistiu que obteve o consentimento, para ir falar ao eminente psiquiatra. O doutor Juliano Moreira recebeu-o com a sua inesgotável bondade que, mais do que seu real talento, é a dominante na sua individualidade. Ouviu o doente com calma, interrogou-o com doçura e respondeu ao pedido dele:

– Por ora, não consinto, porquanto devo antes pedir, a esse respeito, as luzes de um qualquer notável jurídico.”[10]

*Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira. Acesso em 06 de junho de 2020. Ao final do seu artigo, afirma o autor que, “aos 85 anos, felizmente não perdi o meu amor ao diálogo e à democracia.” Quanto ao primeiro amor, até acredito; em relação ao segundo, não creio! Quem escreve algo assim, amor pela democracia parece não ter.

[2] MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil – Volume V. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 167. Esta obra foi escrita em coautoria; nada obstante, este volume ficou a cargo deste autor, como ele próprio esclarece no artigo referido na nota anterior.

[3] CIORAN, Emile M. Breviário de Decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 127.

[4] Estas disposições constavam dos arts. 98 e 99 da Constituição Política do Império do Brasil, outorgada por D. Pedro I, em 25 de março de 1824.

[5] LEAL, Aurelino. História Constitucional do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, p. 122 (edição fac-similar). O próprio Benjamin Constant reconhecia a origem da ideia: “não reclamo a honra dela: encontra-se o seu gérmen nos escritos de um homem muito ilustrado, que morreu durante as nossas perturbações.” Ele se referia exatamente a Clermont-Tonerre, para quem o Poder Moderador assentava as suas bases “em reminiscências e tradições religiosas.” (p. 123). Quem sabe não seja o porquê…

[6] Nesta época, em Pernambuco, eclodiu um movimento revolucionário que ficou conhecido como a Confederação do Equador (que depois se alastraria por outras Províncias do Nordeste, especialmente no Ceará), de matriz republicana e separatista, fortemente influenciado pela Revolução Pernambucana, ocorrida poucos anos antes. Este movimento foi duramente reprimido pelo imperador, e vários revolucionários foram condenados à morte, entre eles, Frei Caneca, que já havia participado também da Revolução Pernambucana.

[7] DINES, Alberto, FERNANDES JR., Florestan, SALOMÃO, Nelma (Organizadores). História do Poder – 100 Anos de Política no Brasil, Volume 1: Militares, Igreja e Sociedade Civil. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 353. O general Leônidas Pires Gonçalves integrou o gabinete militar dos presidentes Jânio Quadros e Castelo Branco, e, mais tarde, também o governo de José Sarney, agora como ministro do Exército.

[8] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 227.

[9] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 163.

[10] BARRETO, Lima. Toda Crônica. São Paulo: Agir, 2004, p. 450-51. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-logica-do-maluco-Lima-Barreto-Careta-08-10-1921-/4/44024. Acesso em 06 de junho de 2020.