Arquivos Diários : março 22nd, 2021

Coletivo Transforma MP e entidades jurídicas pedem ingresso como amicus curiae em ação que discute a aplicação da lei de segurança nacional

 

Os coletivos Transforma MP, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Associação de Juízes pela Democracia (AJD) e a Associação de Advogadas e Advogados Públicos pela Democracia (APD) enviaram ao Supremo Tribunal Federal o pedido de amicus criae (amigo da corte), para participar do debate sobre a (in)constitucionalidade da Lei de Segurança Nacional de 1983. 

Lei sancionada no final da Ditadura Militar tem sido utilizada por por Jair Bolsonaro com a finalidade de processar e perseguir opositores do governo federal.  

De acordo com as entidades a norma fere a liberdade de expressão, garantida pela Constituição Federal de 1988 e é um ataque à democracia.

 

Cartas para nós: Da luta da alma a uma homenagem a meus pais

 

Por Helena Barbosa Brasileiro dos Passos 

Meu desafio aqui é fazer um tributo a meus pais através de uma experiência de dor que, trata-se da centralidade da minha vida, do sentido primeiro da vida, desde que pude divisar entre os caminhos a seguir.

Há pelos três anos acalento fazer uma homenagem a meus pais. Tudo começou quando, em terapia para entender meu filho, fui levada a me amar, a saber de onde eu vim, a dar valor a mim e, por consequência, reconhecer, agradecer e celebrar a minha vida nascida do encontro físico, anímico e espiritual dos meus pais. Aqui uma história forte, que conto depois. Encontrei uma fotografia, das que me couberam do espólio mirrado da família, e recebi a incumbência de construir reconhecimento e gratidão por mim e por todos naquela foto, especialmente meus pais. Daí à necessidade de homenageá-los foram três anos. Sem qualquer ensaio prévio, escolhi escrever mais uma carta para o livro, que em breve nascerá, com relatos impressionantes de mulheres apaixonadas e apaixonantes … que honra dividir este espaço com essas irmãs. Cada uma fala de si e todas falam um pouco de cada uma … uma ciranda harmoniosa e desafiante.

Meu desafio aqui é fazer um tributo a meus pais através de uma experiência de dor que, para alguns pode parecer sem sentido ou apenas de cunho político, mas como espero transmitir a seguir, trata-se da centralidade da minha vida, do sentido primeiro da vida, desde que pude divisar entre os caminhos a seguir. Vamos ao desafio, segura aí, compas de luta!!

Tudo começa em São Bernardo do Campo (SBC), dia 7/4/2018, ouvindo o Presidente LULA (permitam-me tal desalinho … é que tanta emoção escorre no papel e o marca com impropriedades). Estava lá e ouvi a missão: “agora sem pernas para andar e silenciado em uma prisão arbitrária, inconstitucional, ilegal e injusta, cada um de vocês será LULA”. “Missão dada é missão cumprida”: escutei da boca de meu pai, já falecido. Passei o dia entre andar por SBC com uma camiseta vermelha da campanha presidencial de 2002 e a solidão do quarto do hotel. Durante a caminhada, parecia que cumpria a missão … na solidão, sobrou muito choro e a pergunta: como vou conseguir ser LULA? Pensava: não sei ser firme sem ser dura, nem relaxada sem ser mole, como, decerto vejo LULA. Certamente, minha alma é algo generosa, como requer a missão de ser LULA, mas difícil a missão de ser radical sem ser inflexível!!

Sou a primeira filha que sobreviveu ao descuido médico. Morta a primeira por uma injeção desastrosa nos braços de minha mãe em um pronto socorro imundo da zona norte do Rio, eu seria a primogênita: seria e sou eternamente apaixonada por meu pai, sindicalista, getulista, janguista, amigo de JK, demitido da NOVACAP em 1969, por corrupção, diziam baixinho, sem que ao menos uma linha tenha sido escrita, foi recolhido de um lixão por religiosos, com eles viveu por 10 anos, leu os clássicos, formou letra e redação de doutor mas como profissão tão somente sapateiro. Tinha horror à ditadura militar e ensinou, a quem tivesse ouvidos para ouvir e coração para viver, todos os domingos, quando líamos, na mesa do café da manhã, o jornal que nos caía a mão, a odiá-la tanto quanto ele. Só eu percebi a dor nos olhos do Papai … eu os via enquanto fitava as costas dele … a dor era tanta que vazava por entre as omoplatas … a ditadura impôs a ele o afastamento da missão que recebera de JK: buscar moradia digna para toda a população que estava na região do Lago Sul de Brasília, para que a inundação fosse iniciada. Desempenhando tal missão, chegou a ocupar cargo de importância e, mais importante, desenvolveu um natural carisma, talento para fazer amigos entre os mais humildes … minha casa vivia cheia, parecia romaria … posso ouvir a voz dele: “nega, aquele cafezinho fresco” … minha mãe nunca parava no cafezinho, era café e sorriso, pão e conversa, manteiga e abraço. Li Monteiro Lobato em um livro que sobrou da época no convento: aprendi que o petróleo é nosso, yanques imperialistas, go home!! Um dia ele foi embora e meus/minhas sobrinh@s e filho não tiveram o privilégio de conviver com ele. Mais tarde, meu irmão, juiz do trabalho, herdeiro do amor de meu pai pela CLT,  assassinado, vítima de homofobia, o traria de volta a nosso convívio … nunca mais foi a mesma coisa … eu não consegui vencer a resistência punitivista para abraçar meu pai e a nova família que ele havia constituído … aí ele se foi de vez, morreu, como Sílvia, minha primeira irmã, de descuido médico, abandonado em uma emergência de Belém, sem médico, sem esperança, sem cuidado, sem justiça!!

Do outro lado da minha vida, uma linda nordestina da Zona da Mata pernambucana, analfabeta, e escravizada pela “caridade dos bons”. Foi levada da família, onde cuidava, desde tenra idade, dos irmãos menores, para que meus avós plantassem a terra, para a linda Rio de Janeiro, para ser “filha de criação”. Trabalhou por cama e comida, sem nunca ter ido à escola. Já em Brasília, com as filhas grandinhas, resolveu ir ao mobral …. meu pai, um homem tão belo, era também vítima do patriarcado, vítima da paternidade irresponsável de um homem que desprezava mulheres e, assim, os filhos que geravam nos ventres cheios de dor, e, assim, sem qualquer oportunidade histórica de negar o próprio legado de macho patriarca, negou a ela o direito de estudar. Ela aprendeu a ler, escrever e fazer contas, tomando a nossa lição de casa para “quando o Papai chegar, encontrar tudo feito”, dizia ela. Brilhante mulher, aprendeu, fingindo que sabia. Eu, certamente, a única filha que também viu a dor da Mamãe ao escutar o interdito proibitório de meu pai … a dor vazava por entre as omoplatas … mais tarde, bem mais tarde, ela disse a mim, já uma adolescente: “mulher é assim, puta de noite e empregada de dia” … quanta mágoa do mundo, dos homens que odeiam as mulheres, desta sociedade patriarcal e predadora dos talentos femininos!! Obrigada Mamãe: herança recebida e resignificada na luta!!

Quanta herança! Mas vem mais. Durante a caminhada por SBC, umas boas 3 horas, achei que estivesse preparada para a missão “Sou LULA”! Mas, na solidão, em meio a lágrimas precisei ir mais fundo na minha herança. Segura essa moçada!

Éramos pobres, especialmente depois que meu pai foi demitido do serviço público. Assim, usávamos o INPS: 4:00 da manhã na fila para pegar número. O posto só abria às 7:00. A filha mais velha, eu, acompanhava a Mamãe. Meu pai dormia … um privilégio do phalus … quem manda não ter um, diria a leitura freudiana … temos um, aliás temos 3!! Depois, na intimidade, explico melhor!! Perto das 6:00, minha mãe me deixava na fila em confiança de alguém com quem ela já tinha desenvolvido relação de amizade instantânea, e ia até nossa casa pra “passar um café fresquinho para todos da fila!. Meu pai argumentava: “nega, já leva às 4:00”. Ela dizia: “não, tem que ser fresquinho!”. Enquanto servia a todos, negociava acomodações na fila de forma a dar preferência aos mais necessitados … era uma bagunça louca … eu quase morria de vergonha … no fim, estavam todos solidariamente felizes na fila do descuido médico com o carinho cuidadoso do café com sorriso, conversa e abraço: pronto, aqui eu aprendi a ser LULA!! Antes desta missão, aprendi que justiça só se faz com enorme intimidade. Para dar justa organização à fila, minha mãe sábia conversava com tod@s e cada um@. Assim, eu entrei para o Ministério Público brasileiro e, nos últimos 29 anos, preparei-me, fora e dentro da instituição, para promover justiça a “la Eurídice”. Minha mãe chamava-se Eurídice, o outro nome de justiça, em grego. Eurídice é a esposa de Creonte, o rei que julgou e condenou Antígona. Meu pai chamava-se Sílvio, da selva, neto de índia, trouxe para minha alma o mistério e a beleza da natureza que alinhava com enorme poder de sedução e carisma enquanto minha mãe, bela de corpo e de alma, me desafiou com a complexa operação de promover justiça através da transformação da Nação, começando pelo que está mais próximo, a fila do INPS, em sociedade solidária de irmãs e irmãos que desfrutem, com alegria e igualdade, de todos os bens materiais e imateriais da vida. Quanto luxo!! Acho que dá para cumprir a missão!! Mais do que isso, minha descendência conhecerá meus pais e receberá a herança, ou seja, a luta pela Nação solidária!!

Desde 7/4/2018, assino Lúcia Helena LULA da Silva, (Silva era o sobrenome de solteira da minha saudosa Mamãe).

Adendo só para os amigos, escrito em 24/01/2018:

O que significa LULA?

Parece que faz mais sentido dizer que LULA não é apenas um nome; o nome de um homem; o nome de um dos líderes mais importantes do século XXI. LULA exige calma e um certo ritmo para que se declare tudo … tudo não … quase tudo sobre o que uma palavra pode significar. Com calma! Mas, como? O tempo parece contra LULA e contra o próprio sentido histórico das profundas referências que a palavra impõe … o tempo, talvez apenas a história consiga fazer justiça às verdades que LULA encerra … quantas vezes se declararam as profundas implicações deste nome mas nada, ninguém conseguiu deter a fúria da oligarquia atrasada e dos interesses mesquinhos que roubaram , à luz do dia, o projeto de Nação, de vida digna para todos e todas, de país soberano, de realização do sonho constituinte que o nome LULA parece evocar .. falo da completa falta de chão, do desalento de ver o aprofundamento do golpe dos interesses escusos contra uma Nação rica e diversa; contra irmãos e irmãs esquecidos e violentados desde os primeiros passos da formação da Nação brasileira …sem chão, sem terra, sem Nação, sem LULA … mas LULA, além de nome, é  sobrenome … e “sobrenome” é uma palavra interessante … está sobre o nome; fica quando nome passa. Assim, se dá com o projeto de Nação que se chama LULA, se chama como sobrenome, ou seja, passam os nomes e o projeto fica … que assim seja! LULA, o sobrenome da Nação brasileira!!

Lúcia Helena LULA da Silva!! Até que a luz volte a brilhar!!

 

Helena Barbosa Brasileiro dos Passos

                                              

 

Des(p)ejo!

Artigo da promotora de Justiça MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN.

Quando Carolina Maria de Jesus contou, em seu livro, que apresentava suas peças escritas ao dono do circo e ele dizia: “é pena você ser preta”, fui a cor que não coube. A pele errada e eliminada das estatísticas do Atlas da Violência. O não escrito, não lido, não dito e não vivido. O banco de reserva que nunca entrará em jogo. O ônibus que não parou. O violão sem cordas.  A eterna plateia. O feio, o errado e o escondido, descabido, inoportuno. O descarte.

Não fui Carolina, nem Maria. Tampouco de Jesus.

Mas fui quarto de despejo.

Do canto da sala de aula, na década de 80, quando vi minha amiga, com 10 anos de idade, ouvir em silêncio que era uma negrinha imunda que cheirava cocô, fui o grito que não saiu de mim. A testemunha nunca arrolada. O corpo negro morto no chão frio do hospital do Piauí pela falta de maca. Fui dor engolida. Esquecida. E distribuída, por todos os pedaços do meu corpo.

Não fui Márcia.

Mas fui canto de despejo.

Quando ingressei na Faculdade de Direito da universidade pública, em 1993, e me vi rodeada de 123 colegas brancos e 02 negros, fui o teatro da meritocracia. A farsa narcísica da lógica neoliberal que esconde o privilégio branco em competições brancas. Fui a solidão do estrangeiro de mim mesma. A fronteira. A diáspora. O fragmento. A parte que falta.

Não fui Alexandre, nem Iara.

Mas fui furo em despejo.

Nos muitos anos que contribuí para o sistema penal cumprir seu papel e na inumerável quantidade de réus negros e juízes brancos que naturalizei no cenário de Justiça, fui o barulho da algema. A roupa ocre. A cabeça baixa. A havaiana no pé escuro. O som agudo do cadeado. A porta se fechando depois do não. As portas. O não. Outro não. E outro. E um mundo de nãos. O medo disfarçado na confortável prisão da não possibilidade.

Não fui os denunciados, qualificados, autuados, indiciados…

Mas fui cárcere para despejo.

Quando, sem que eu perguntasse, a advogada negra do racista se sentou em minha frente para dizer que negar o racismo do mundo era sua questão de sobrevivência, e que só ela tinha o direito de escolher como viver a dor que era dela, fui o vazio do capitão do mato. O desamparo mais profundo. As noites de insônia. As ruas sem saída. O celular desconectado. A escolhida para não ter o sedativo da ilusão. O medo de desaparecer sem alguma sobra de olhar, carinho ou palavra. A declaração de um amor capenga.

Não fui a Dra Diana.

Mas fui migalha no despejo.

Quando vejo que dos míseros 5% de pessoas até então vacinadas no Brasil pela pandemia da COVID 19, acima de 70 anos, 90% são brancos porque negros não têm o direito de envelhecer, sou a fila do pronto socorro. A urgência menos urgente.  A asfixia dos hospitais sem leitos. Sou o desmantelamento do SUS escancarado na falta de logística para testagem e rastreamento, na vacina negada, na pouca quantidade de fisioterapeutas qualificados para intubação, nos enfermeiros exauridos, nos médicos que ocuparam, depois, e para morrer, os leitos de seus pacientes. Sou quase 300 mil mortos. Sou o cinismo de mais de 500 anos de história bem sucedida no projeto de morte e dor, sobretudo dos corpos negros, coroada por um 2020 de escárnio sem precedentes. Sou o genocídio.

Não fui o negro que não envelheceu.

Mas fui despejo da vida.

Hoje, não sou um dos 20 mil negros que pacificamente protestaram, no dia 21 de março de 1960, em Sharpeville, na África do Sul, pelo direito de não terem os espaços e os tempos de seus corpos delimitados por uma tal “lei do passe”, que dizia que corpos negros não poderiam se misturar aos corpos brancos.

Não sou uma das mulheres que encontraram, nesse dia, seus grandes amores tombados no chão, cravejados pelas metralhadoras covardes da polícia, e convertidos em rios de sangue tão voluptuosos que chamaram a atenção da ONU para o escândalo mundial do apartheid.

Não sou Severo, da saga de Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que morreu porque pelejava pela terra de seu povo negro, onde sempre viveram enterrando umbigos, fazendo as festas de jarê, construindo casas, quintais e cercas até serem expulsos, para nunca mais terem um pedaço de chão para plantar e colher.

Tampouco sou Bibiana, amor de Severo e Belonízia, que ressignificou seus rios de sangue sendo o olhar e a voz do outro.

Não vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Nunca acudi uma mulher negra que incendiou o próprio corpo por não mais querer ser possuída por seu senhor. Não fui a mulher que retirou o filho do ventre para que não nascesse escravo. Não enlouqueci quando me separaram dos meus filhos que seriam vendidos. Não tive arado. Tampouco foi torto.

Meus filhos não andam bem vestidos, com RG e nota fiscal no bolso, com medo da polícia. Não tenho receio de dirigir um bom carro e ser confundida com uma sequestradora. Nas lojas que vou, nos restaurantes que frequento, não me confundem com os funcionários subalternizados e tampouco estranham que eu seja Promotora de Justiça.

Mas, aqui e ali, já fui atravessada por portas que se fecham, algemas que brilham e ar que falta. Aprendi um tanto sobre fragmentos e despedaçamentos, sobre palavras que nunca são escritas, ditas ou ouvidas, vidas não vividas e corpos sem tempo e espaço. Já ouvi gritos engolidos e vivi dores sem escuta e direito de serem dores.

É por isso que, do lugar e tempo da branquitude do meu corpo, estou aqui para ser tanto e tão pouco, e para dizer, a quem puder ser comigo, que o dia 21 de março é o dia internacional da luta pela eliminação da discriminação racial no mundo.

Há rios de sangue atrás de nós em nome dessa luta e, por eles, e pela Constituição de nosso país, sejamos olhos e voz.

Que de cada despejo façamos, sempre, outro desejo.

 

 

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP Integrante do Coletivo Transforma MP