Arquivos Diários : abril 19th, 2021

A pandemia e a máscara da morte

 

Por Rômulo Moreira no GGN

Curto e macabro, A Máscara da Morte Rubra pode ser considerado como um dos melhores contos de horror de Edgar Allan Poe, e foi possivelmente inspirada em um terrível surto de cólera que atacara a Europa, mais especialmente a França, na primeira metade do século XIX.

“Tive um sonho, que não era de todo um sonho:

O sol estava extinto e as estrelas vagavam pelas trevas eternas,

Sem raios, sem rumo.

A Terra congelada, girava às cegas no ar que escurecia, sem Lua.

Manhã veio e se foi, e retornou sem trazer o dia.

Em meio à desolação, os homens esqueceram-se de suas paixões.

E corações enregelados entregaram-se a uma prece egoísta pela luz.”

Há um famoso conto de Edgar Allan Poe, o mestre do mistério, do fantástico e do suspense (aliás, uma de suas histórias mais curtas) que se chama A Máscara da Morte Rubra (The Masque of the Red Death, em inglês), publicado pela primeira vez em maio de 1842, cujo enredo, em síntese, aborda a loucura diante de uma epidemia.[3]

Curto e macabro, A Máscara da Morte Rubra pode ser considerado como um dos melhores contos de horror de Edgar Allan Poe, e foi possivelmente inspirada em um terrível surto de cólera que atacara a Europa, mais especialmente a França, na primeira metade do século XIX.

Relendo-o agora, e em tempos de pandemia, a história pareceu-me extremamente atual, inclusive porque revela a que ponto podem chegar a loucura e os desvarios do homem, diante de uma ameaça mortal da natureza.

O conto lembra, também, a irresponsabilidade que hoje se vê em alguns líderes mundiais, que se notabilizaram (e ainda se notabilizam) pelo desprezo à vida, pelo negacionismo ignorante, pela necropolítica e pela barbárie!

Allan Poe conta a história de um príncipe “feliz, destemido e sagaz” que, diante de uma doença terrível que se abatera sobre o seu país e o devastava (“jamais outra praga tinha sido tão fatal ou tão horrenda”), e ao perceber “que seus domínios já haviam perdido a metade da população, chamou à sua presença um milhar de seus amigos saudáveis e joviais, escolhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte, e com estes retirou-se para a segurança e reclusão total de uma de suas abadias fortificadas.”

O príncipe e os seus cortesãos “acreditavam ser possível desafiar o contágio” (quem sabe em razão de seu histórico de atleta…), afinal, “o mundo exterior que cuidasse de si mesmo, e era tolice, enquanto isso, lamentar os mortos ou até mesmo pensar neles.”

(Afinal, ele não era coveiro e todos iriam, finalmente, morrer um dia…).

Tranquilo em sua fortaleza, e enquanto “a pestilência rugia mais furiosamente por todos os recantos do país”, o príncipe resolveu dar uma grande festa, como se nada estivesse acontecendo ao seu redor, aglomerando-se num “baile de máscara de magnificência ainda maior que a usual, cenário de grande prazer e voluptuosidade.”

No dia da grande festa tudo corria bem, e todos se divertiam aglomerados, quando, à meia noite, após “soar as doze badaladas no relógio de ébano, a música cessou, as evoluções dos passistas se interromperam e uma inquietude suspendeu todo o movimento.”

Eis que, inopinada e surpreendentemente, durante aquelas doze badaladas, surgiu “uma criatura mascarada que não havia atraído antes a atenção de ninguém, e o rumor desta nova presença se espalhou aos murmúrios, até que uma espécie de zumbido ergueu-se da turba, um sussurro expressivo de desaprovação e surpresa, transformando-se enfim em medo, horror e náusea.”

 Allan Poe, então, escreveu: “Existem acordes nos corações dos mais levianos que não podem ser tocados sem lhes despertar emoção. Mesmo os inteiramente perdidos, para quem a vida e morte são idênticos brinquedos, têm certos tabus que não podem ser quebrados por zombarias.”

  E naquele momento da aparição da estranha criatura (“alta e esquálida, amortalhada da cabeça aos pés pelos planejamentos que costumam ser levados à tumba”) todos sentiram “profundamente que na fantasia e no porte do estranho não existia graça nem elegância.” A máscara da inusitada personagem de Poe “tinha sido confeccionada de modo a lembrar, em seus menores detalhes, o rosto de um cadáver endurecido.”

Ao vê-lo, o príncipe “imediatamente foi tomado de convulsões, com fortes tremores provocados pelo medo ou pelo nojo; mas, no instante seguinte, sua testa ficou encarnada de cólera.” Esbravejou, então:

“Quem ousa insultar-nos com esta farsa sacrílega? Agarrem-no agora e tirem-lhe a máscara, para que saibamos quem vamos enforcar nas muralhas amanhã pela manhã!”

Assim que o príncipe vociferou, um grupo fanático e fundamentalista de apoiadores – tal como se vê hoje – foi em direção ao mascarado, mas, “devido a um espanto e terror sem nome despertado no coração de todos pela assombrosa fantasia adotada pelo farsante, nenhum dentre eles ousou estender a mão para capturá-lo.”

 Eram, no fundo, uns covardes!

Então, sem ninguém para impedi-lo, o mascarado aproximou-se a um metro do príncipe, sem lhe dar maior atenção, e prosseguiu adiante pelos salões da abadia. O príncipe, “enlouquecido pela raiva e pelo opróbio de sua própria e momentânea covardia, ergueu bem alta uma espada contra o estranho, para atingi-lo.”

O mascarado, no entanto, “voltou-se subitamente e confrontou seu perseguidor. Ouviu-se um grito agudo, e a espada caiu reluzindo sobre o tapete negro, seguida, no momento seguinte, pelo corpo do príncipe, fulminado pela morte.”

Então, uma “massa alucinada” agarrou o mascarado, quando “perceberam que a mortalha fúnebre e a máscara mortuária de que se haviam apoderado com rudeza tão violenta não envolviam nenhuma forma tangível.”

Era a morte, disfarçada de convidada para a festa, que chegara “como um ladrão à noite, e um por um caíram os dançarinos nos salões em que se haviam alegrado e cada um deles morreu na mesma postura desesperada em que havia tombado.”

(Re)lembro este conto, pois, metaforicamente, vejo alguma semelhança com o que se passa no mundo de hoje, em tempos de pandemia, recordando as milhões de mortes causadas pela Covid-19, e os “príncipes” que desafiaram (e desafiam) o vírus, negando-o ou, simplesmente, deixando a população morrer pela falta de informação, de vacinas (insuficientes e atrasadas) e, sobretudo, de vergonha!

[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.

[2] BYRON, George Gordon (Lord). Darkness, em The Works of Lord Byron: A New Revised, and Enlarged Edition with Illustrations, Ed. Ernest Hartley Coleridge, Vol 4 (Londres: John Murray, 1901), p. 42. Citado por GLEISER, Marcelo. A Ilha do Conhecimento. Rio de Janeiro: 2014, p. 123.

[3] POE, Edgar Allan. A Carta Roubada e Outras Histórias de Crime e Mistério. Porto Alegre: L&PM Editores, 2003, pp. 152-161.

Ameaças à Ciência

 Por Leomar Daroncho e  Marco Antônio Delfino de Almeida no Correio Braziliense

 

“Em junho de 2019, recebi indicação de lideranças de movimentos sociais para que eu evitasse os mesmos caminhos, para que eu alterasse os meus horários, para que alterasse a minha rotina, de forma a me proteger de possíveis ataques dos setores econômicos envolvidos com a temática sobre a qual eu me debruço.”

O trecho da carta da Dra. Larissa Mies Bombardi – Professora do Departamento de Geografia da USP – chocou os defensores da pauta civilizatória. Trata-se de ameaça à ciência independente, que aponta riscos ao meio ambiente e à vida humana. Num tempo de fúria contra medidas sanitárias, o obscurantismo também mostra as garras diante da ciência que expõe as mudanças climáticas e os danos ambientais de métodos predatórios de produção. A ameaça à Dra. Larissa representaria mais um triste episódio na escalada do raso senso comum contra o conhecimento científico.

Em seu didático “Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, a Dra. Larissa alerta para a permissividade aos agrotóxicos, presentes inclusive na água que sai de nossas torneiras. A obra tornou-se referência obrigatória nos espaços em que o tema é estudado com seriedade, no Brasil e no exterior.

Prova de sua relevância é a solidariedade imediata de uma série de instituições acadêmicas e governamentais, além das organizações da sociedade civil de defesa contra os agravos dos insumos químicos à natureza e à vida humana,

A prática da intimidação a cientistas não é nova na história. Giordano Bruno, Galileu Galilei e Charles Darwin são alguns dos casos mais conhecidos. Em 1962, a autora de “Primavera Silenciosa”, Rachel Carson, demonstrou cientificamente os danos de agrotóxicos organoclorados ao meio ambiente e à saúde humana. Sofreu uma campanha difamatória repleta de ataques pessoais, à sua condição de mulher pesquisadora. Ilustra os ataques o trecho de carta publicada na revista New Yorker: “A posição de Rachel Carson reflete suas simpatias comunistas. Nós podemos viver sem pássaros ou animais, mas como demonstra a atual queda do mercado, não podemos viver sem a economia”.

Na mesma época, o golpe militar de 1964, no Brasil, desencadeou a perseguição explícita à ciência, com as icônicas ocupações da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e da UnB. À ocupação seguiram-se as cassações, com o AI-5, de abril de 1969, em que foram compulsoriamente aposentados 41 professores universitários. No dia 1º de abril de 1970, dez cientistas da Instituição Oswaldo Cruz (precursora da Fiocruz) foram cassados com base no mesmo AI-5. Entre eles Herman Lent, referência mundial no estudo de besouros, o inseto transmissor da doença de Chagas, no episódio conhecido como Massacre de Manguinhos.

É fundamental que não haja indiferença diante destes tristes episódios. O Estado deve respeitar, proteger e garantir o livre pensar. Não é cabível que a ciência, que já agonizou com o negacionismo religioso e ditatorial, curve-se ao negacionismos alimentado por milícias digitais. É dever das instituições do Estado a tempestiva apuração dos fatos. Não admissível que um país reconhecidamente perigoso para jornalistas naturalize as ameaças a cientistas.

O episódio também joga luz no déficit de reconhecimento do protagonismo das mulheres cientistas. O livro “La Ciencia Oculta”, editado pela Fundação Dr. Antonio Esteve (Espanha) examina o papel de 14 grandes pesquisadoras relegadas ao segundo plano, ou deixadas no miserável anonimato, apesar da grande contribuição para a ciência. “O papel da mulher na ciência esteve – e está – cheio de dificuldades”, resume o autor.

A narrativa da covarde ameaça descortina a desigualdade de gênero e a falta de apoio no local de trabalho, expondo dramaticamente a assimetria na carga das responsabilidades domésticas no cenário pandêmico, com a sintomática reflexão da Dra. Larissa: “Eu me perguntava: como uma mulher, mãe de dois filhos, única responsável pelas crianças e pela rotina das crianças poderia mudar algo na rotina.”

O recrudescimento da pandemia, com intensas perdas e muita dor, que também resulta do desprezo para as orientações da ciência, é mais um alerta para que a sociedade, que se pretende civilizada, tenha consciência dos danos causados pela sanha negacionista em relação aos agrotóxicos. A ameaça a cientistas compromete as possibilidades de um ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, para as presentes e futuras gerações.

Marco Antônio Delfino de Almeida – Procurador da República

Leomar Daroncho – Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP