A bailarina Baderna e a história de resistência por trás dessa palavra

Por Vitor Paiva, no Hypeness.

Por trás de toda e qualquer palavra, das mais simples às mais exóticas, existe uma história. A etimologia ou a origem de um termo, gíria ou expressão pode ir muito além de meras premissas linguísticas, e revelar traços culturais, sociais e até mesmo econômicos sobre um país, uma época ou uma pessoa. Poucas palavras, no entanto, possuem efetiva e objetivamente uma história tão concreta, e ligada a uma fascinante personagem real e especifica quanto a palavra “baderna”.

Segundo o dicionário, “baderna” é um substantivo feminino, de origem brasileira, com função pejorativa, que quer dizer “situação em que reina a desordem; confusão, bagunça”. Sabemos, no entanto, que a baderna é justificativa utilizada para todo tipo de repressão por autoridades, dos professores aos policiais, contra os alunos mais alegres, as festas populares, as reuniões mais efusivas e a acaloradas, a alegria desenfreada, as manifestações políticas ou tudo que sai da retidão contida da ordem. Assim como muitas badernas propriamente, essa é uma palavra exclusivamente brasileira – que só existe no português.

Houve um período, porém, mais especificamente na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro, em que Baderna era simplesmente o nome de uma bailarina. Por trás desse signo de desordem existiu uma mulher forte, talentosa e fascinante – e um séquito de seguidores que a admirava e defendia ruidosamente. Ainda que não tenha destaque nos anais da história da dança nem muitas vezes seja sequer lembrada, foi pelo seu estilo e talento, aliado a um coquetel de preconceito, misoginia e também resistência, mobilização e comoção que seu nome se imortalizou há tempos nos dicionários nacionais. Sua história, no entanto, vai muito além do mero verbete.

Marietta Baderna nasceu na cidade de Castel San Giovanni, província de Piacenza, no norte da Itália, em 1828. Filha de Antônio Baderna, médico e músico nas horas vagas, rapidamente seu destino artístico se traçou, com dedicação especial ao balé, estreando aos 12 anos nos palcos suas sapatilhas. Rapidamente Baderna passaria a fazer parte da companhia de dança do teatro Scala, de Milão e, aos 21 já se destacava como “prima ballerina assoluta” (ou primeira bailarina absoluta) com sucesso por toda a Itália, participando de diversas turnês em outros países europeus.

A rebeldia, pelo que se relata, corria no sangue de Marietta, e seu pai, em pleno contexto de ocupação austríaca na Itália, se afirmava publicamente como um entusiasmado defensor do movimento democrático que corria a conturbada Europa dos meados do Século XIX. À época da resistência, no entanto, os rebeldes revolucionários mantinham como forma de protesto a decisão de que não houvesse vida artística no país enquanto durasse a ocupação – e, militante que era, Marietta seguiu tal orientação. A perseguição política direta sofrida pelos apoiadores do movimento democrático era intensa, e assim Antônio e sua filha entenderam que era hora de cruzar o Atlântico. A família Baderna desembarcou em exílio no Brasil em 1849.

O país que se tornou casa da militante Marietta era ainda um conservador império escravocrata (o que, no fundo, ainda segue sendo), governado por Dom Pedro II. Com seu talento, rapidamente Baderna estreou como bailarina em palcos brasileiros (mais precisamente em 29 de setembro de 1849, com o balé “Il Ballo delle Fate”), um acontecimento de tal forma celebrado que, à época, seu sucesso por aqui foi capaz de ofuscar até mesmo a luz das grandes divas do canto. Marietta em pouco tempo se tornou, no Brasil, uma estrela.

Baderna não era, porém, revolucionária somente em suas orientações políticas, mas também em seus costumes: gostava de festejar, de beber, de sexo e, por mais que dançasse nos salões tradicionais, a jovem gostava mesmo era de rua. Foi nas ruas que conheceu a resistência dos escravos, e principalmente que se apaixonou pelas danças que coreografavam tal resistência nos corpos das mulheres negras. A sensualidade e a força dos ritmos e danças africanas rapidamente foram assimilados por Baderna, que passou a não só frequentar as reuniões populares como principalmente a incorporar à delicadeza do balé os passos do lundu, da cachuca e da umbigada – e assim, aos poucos foi mudando sua forma de dançar e se tornando uma bailarina do povo.

À beleza fria da técnica do balé ela acrescentou um certo furor pélvico, a sugestão da sensualidade, da força e da alegria das danças que conhecera nas ruas. A reação foi intensa e imediata: no lugar do impoluto, comedido e tedioso público da alta sociedade que antes lhe assistia, ao importar para o balé as danças de rua Marietta trouxe aos teatros a classe operária, os trabalhadores, os mais pobres, que celebravam sua presença, sua sensualidade e seu gestual em cena feito torcedores de futebol. A bailarina passou a ser conhecida como Maria Baderna, e seus seguidores eram os “baderneiros”. Quando entrava em cena, o público aplaudia efusivamente, batia com os pés no chão e gritava seu nome: Baderna.

Rapidamente o sucesso de Baderna, e principalmente a reconhecível presença da cultura negra em sua dança, fez com que a crítica conservadora, os empresários e a pudica sociedade imperial atacassem a bailarina com furor equivalente ao que sua dança provocava no povo – que passava a se reconhecer numa fina e “elevada” forma de expressão artística. Baderna começou a ser posta em papeis menos importantes, ao fundo do palco, ou mesmo a ser banida de espetáculos, e cada vez que percebiam o boicote, os baderneiros tratavam de se expressar ruidosamente. Se, em sua chegada aos palcos brasileiros, os jornais da época utilizavam seu nome como sinônimo de elegância, com seu sucesso popular a palavra baderna passou a ser utilizada para significar bagunça, desordem e depravação.

Aos poucos as cortinas dos palcos foram se fechando, os pagamentos cessaram, os contratos começaram a desaparecer, e o impedimento a seu nome se solidificou – a outrora estrela italiana da dança se transformara em musa do povo, dos ritmos negros, da cultura popular, e assim se definiu seu ocaso. Segundo a biografia Maria Baderna, a bailarina de dois mundos, do italiano Silverio Corvisieri, ela “vivia livremente demais para o Brasil de Pedro II”. A perseguição que sofrera na Itália de certa forma se reproduzia no Brasil; Baderna foi ao Recife, mas lá também foi boicotada – e, enquanto os poderosos de plantão tentavam expulsá-la do país, os trabalhadores, estudantes, jovens e escravos a viam como a expressão de um Brasil melhor, mais popular, mais livre: pelas mãos e pela dança de uma imigrante, enxergavam nela um Brasil mais efetivamente brasileiro.

O fim de sua vida permanece um tanto nebuloso. Dizem que teria voltado à Itália depois da morte de seu pai por febre amarela, ou que Antônio não teria morrido, e voltado à Europa com ela, e Baderna teria passado a dar aulas de dança até sua morte, em 1870. A rebelde que desafiou o conservadorismo por amor à dança, por alegria e por sincero interesse nas manifestações populares não viveu para ver a abolição da escravatura no Brasil nem a premissa da mistura entre a dita alta cultura e a cultura popular se tornar base para as mais profundas revoluções artísticas e éticas na cultura nacional.

A mística ao redor de sua vida, no entanto, nos faz hoje pensar no potencial revolucionário que a arte, enquanto um provável espelho dos anseios, desejos, fúrias e expressões de uma população, pode possuir. Ao levar o povo para dentro dos nobres teatros e salões – estética ou literalmente – e se tornar alvo dos esforços conservadores, Baderna expôs o quanto as elites e os poderosos em verdade lutam contra a educação, a expressão e a libertação, mesmo que simbólica, das camadas populares. A dança de Baderna era também uma luta, contra a igualmente precisa coreografia que até hoje desqualifica e diminui o que vem de tais camadas.

O sequestro de seu nome, no entanto, pode ser visto ao fim de tudo como um involuntário tributo às avessas. Os baderneiros podem ser vistos hoje em muitos casos também e ainda como sinônimos de resistência contra tal sinistra dança conservadora e elitista – se valendo do que a imprensa insiste em chamar de baderna para atacar a hipocrisia vigente que esconde o massacre contra tudo que a bailarina, com seu corpo, afirmava enquanto força: a cultura negra, a sexualidade, o feminino, o popular. Maria Baderna se diluiu como artista na força transformadora da dança enquanto gesto, enquanto corpo em movimento, para se transformar em uma palavra mal apropriada e mal criada, mas que, revista em sua origem, se revela com um sentido paralelo profundo em potencial, de resistência e liberdade.

Foto: Bloco Maria Baderna – Belo Horizonte.

 

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