A ‘defesa da democracia’ como justificativa para o estado de exceção

Artigo do procurador e membro fundador do Coletivo Transforma MP, Gustavo Roberto Costa, no Conjur.

A prisão do ex-deputado Roberto Jefferson traz três questões que me parecem de suma importância no contexto atual. A primeira é a tal da “defesa da democracia” (seja lá o que isso signifique). A segunda é a renúncia paulatina dos mais básicos direitos fundamentais em nome do combate ao autoritarismo (uma contradictio in terminis). E a terceira é o péssimo hábito de setores progressistas em insistir na utilização do Direito Penal para a perseguição de inimigos políticos e para a conquista de direitos (a famosa esquerda punitiva).

Assim como já foram causas para o exercício arbitrário do poder o comunismo, a “guerra às drogas”, o terrorismo e a corrupção (com consequências particularmente nefastas para o Brasil), a bola da vez é a “defesa da democracia”. Vale tudo para defendê-la, até praticar os mais ilegais atos judiciais.

Se Roberto Jefferson praticou os crimes descritos na decisão do ministro Alexandre de Moraes, deveria ser investigado e processado pela autoridade competente (artigo 5º, LIII, da CF). Não detém ele foro por prerrogativa de função. Então, sob qualquer ponto de vista, o Supremo Tribunal Federal não tem competência para prendê-lo, nem para julgá-lo.

O regimento interno do STF, a par de não poder se sobrepor à Constituição e às leis, trata, em seu artigo 43, em “infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal”, o que, evidentemente, não é o caso. A decisão fala em “organização criminosa”, com “atuação digital”, com a finalidade de “atentar contra a democracia”, em ataque a “integrantes de instituições públicas”, descrédito “do processo eleitoral brasileiro”, reforço do “discurso de polarização e de ódio” e outras coisas mais.

Teria Jefferson praticado “crimes contra a honra, racismo, homofobia e incitação à prática de crimes”. Além disso, teria falado na “invasão do Senado”, “ofendido a dignidade e o decoro de ministros do STF e senadores”, induzido a discriminação de pessoas de “índole chinesa e em razão de orientação sexual”, “tudo em postagens e entrevistas difundidas em meios de comunicação”.

A decisão não menciona, nem remotamente, crimes praticados na “sede ou dependência do tribunal”. Os ministros é que teriam sido atingidos em sua honra. Trata-se de um inquérito ilegal desde sua instauração, portanto. Pouco importa se o dispositivo do regimento interno foi ou não recepcionado pela Constituição; importa que está sendo utilizado em hipótese diversa daquela prevista.

Consta da decisão que, em suas falas para canais de comunicação, Jefferson menciona sobre a utilização do artigo 142 da CF para a intervenção das Forças Armadas como poder moderador (uma interpretação errônea, mas livre), chama os ministros de “urubus” e de “bruxas”. Fala da “narcocorte constitucional da Venezuela”, fala de decisões do STF que teriam silenciado canais de “conservadores”, fala que as eleições no Brasil são fraudadas (ainda que equivocado, qualquer um é livre para achar isso), fala na “troca de ministros” (mediante aposentadoria ou impeachment) do STF, fala sobre o “cano do fuzil” das Forças Armadas, fala de uma “ditadura gay” em São Paulo. Diz que se deve “invadir o Senado” e colocar para fora a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) “a pescoção”, chama os senadores de “moleques”, diz que o STF e o Senado são corruptos, que se Lula for eleito “não pode tomar posse”, que o STF é uma organização criminosa. Chama o embaixador da China de “macaco de realejo”. Fala ainda que, “sem eleições limpas, não haverá eleições”.

Parece-me, data venia, que não se trata de um “atentado à democracia”, mas, sim, da prática de crimes comuns.

Se crimes contra a honra há, e parece-me que há, que sejam processados na seara própria (desde que respeitadas as condições de procedibilidade, notadamente o exercício da ação penal privada e a representação dos ofendidos). Os crimes de apologia ao crime e ao criminoso são de menor potencial ofensivo. Grande parte deles não tem pena máxima superior a quatro anos, sendo incabível a prisão preventiva (artigo 313, I, do CPP). E todos os crimes, sem exceção, são praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa. Discutível, para se dizer o mínimo, o cabimento da medida cautelar extrema (artigo 282, I e II, CPP).

Os ataques ao STF não foram com bombas, armas ou tanques, e, sim, ataques verbais, razão pela qual devem, como tal, ter o tratamento jurídico próprio — e nem de longe é a prisão preventiva decretada pelo próprio supremo. Ademais, qualquer um pode entender que os ministros do STF devem ser “trocados”, devem ser aposentados ou sofrer impeachment. Por que não? Qualquer um pode entender possível a intervenção das Forças Armadas e a pressão popular para tal ou qual medida estatal. Trata-se do exercício da liberdade de expressão, por mais absurda e descabida que possa parecer.

E isso sem se falar sobre o ressurgimento (quase que das cinzas) da Lei de Segurança Nacional, o principal instrumento da ditadura militar, aparecendo como uma arma “a favor da democracia”. Contradição maior, impossível.

A luta contra o autoritarismo é uma luta política, e não jurídica. O Poder Judiciário — o mais antidemocrático dos poderes — não pode ser o árbitro da contenda. Amanhã serão os democratas que serão presos por criticar o STF — e não faltam críticas à sua atuação. Defender direitos democráticos para quem gostamos é fácil, mas também são titulares aqueles com quem não temos qualquer afinidade.

Por fim, questão que sempre retorna à pauta é sobre a chamada “esquerda punitiva” — aquela que acredita no Direito Penal como instrumento para a luta por liberdades democráticas. É assim com parte do movimento feminista, que crê no Direito Penal e na supressão de direitos para combater a violência contra a mulher, com alguns antirracistas e defensores da causa LGBT, que creem que processando criminalmente e prendendo pessoas por atos racistas e homofóbicos se pode avançar na conquista de direitos.

O Direito Penal, desde sua fundação como o conhecemos hoje, jamais cumpriu qualquer função para a qual se propôs. Prometeu acabar com a violência, mas só fomentou a violência. Prometeu acabar com as drogas, mas as drogas estão mais disponíveis que nunca. Prometeu acabar com a corrupção, e nem é preciso dizer em que estágio se encontra a corrupção no país e no mundo. Por que acreditar que ele é capaz de “defender a democracia”?

A única coisa que o Direito Penal é capaz de trazer são injustiças. Mais e mais pobres e negros sendo presos, acusados e condenados injustamente. O Direito Penal foi “inventado” para a perseguição das classes subalternas e de inimigos políticos. É incapaz, portanto, de exercer qualquer outra finalidade. É triste ver, até hoje, pessoas que se dizem progressistas que não tenham enxergado essa realidade. Para um Roberto Jefferson que é preso, milhares de desvalidos são jogados em masmorras muito piores.

A luta por direitos não tem nada a ver com o endurecimento do Direito Penal. Não tem nada a ver com a supressão de liberdades processuais. Não tem nada a ver com a prisão. Não tem nada a ver com o fortalecimento do Poder Judiciário. Dar ao Judiciário o papel de mediador das causas democráticas, ainda mais com o uso do Direito Penal, é relegar o país ao atraso.

É lutar contra a democracia, e não a seu favor.

 é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

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