A dura saga por uma liberdade

Por Philipe Arapian, no Justificando.

Mais um dia comum na nossa labuta diária na Defensoria Pública, onde eu me encaminhava para a realização de uma audiência de custódia em uma das Varas Criminais de Goiânia, em Goiás. Conhecedor e compreendedor, cada vez melhor, das nossas derrotas e mais derrotas, deparo-me com Danilo, cidadão primário, sem nenhum antecedente, acusado de uma tentativa de estelionato.

Além da violação ao princípio da homogeneidade, quando a pessoa, mesmo se condenada na pena máxima, não receberá prisão restritiva de liberdade, argumentei que a prisão preventiva naquele caso seria ilegal. Isto porque não preenchia nenhum dos requisitos do artigo 313 que versa sobre prisão preventiva do Código de Processo Penal, inclusive a pena máxima não ultrapassaria quatro anos. Além disso, Danilo só passou a noite preso e foi apresentado diante de nós porque não teve dinheiro para pagar a fiança, uma verdadeira criminalização da pobreza.

Pois bem. Argumentação feita e o resultado clichê para aqueles que trabalham e conhecem o verdadeiro Processo Penal brasileiro. Ministério Público pede a conversão em preventiva e juiz acata. Danilo agora aguardaria preso até o dia de sua audiência de instrução e julgamento por um crime que nem admitiria tal prisão. Infelizmente, situação naturalizada.

Mas vamos ao habeas corpus (HC). Impetro-o no mesmo dia, durante o plantão judiciário. Somente depois de dois dias, obtenho o resultado da liminar. Concedida! Aquela coisa, vibramos, comemoramos junto aos colegas, felicidade imensa, pois as vitórias são raras, mesmo em casos como esse.

No entanto, prestem atenção! A audiência de custódia foi em uma terça-feira à tarde. À noite ajuizei o HC. Quinta-feira de manhã obtive a liminar. Ok. Na sexta-feira à tarde, pouco mais de um dia após a decisão, vou à Casa de Prisão Provisória (CPP) conversar com três assistidos, quando decido passar pelo Cartório da unidade somente para confirmar se Danilo havia sido solto. E, para minha surpresa, não. A servidora me disse que não havia recebido nenhum alvará de soltura. Pausa para o espanto. Primeira indignação.

Retorno ao fórum, passa das seis horas da tarde. Ligo para o número do Plantão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) e falo com a respectiva servidora plantonista. “Ai doutor, desculpe-me, realmente foi falha minha. Esqueci-me de fazer o alvará. Mas agora já distribuí o processo para o desembargador natural, e não consigo mais ter acesso ao processo digital para emitir esse alvará. Temos que aguardar até segunda”. Pausa para o segundo espanto.

Bom, não tenho que esperar até segunda-feira. Não posso. Aliás, Danilo não tem até segunda-feira. Porque, lembrando, ele tem uma ordem judicial de quinta-feira de madrugada ordenando que fosse solto. Assim, passo o sábado ligando para a plantonista e tentando buscar alternativas. Após duas ou três ligações, ela decide fazer um alvará físico para que o juiz assinar, e o oficial de justiça plantonista levar até a CPP no mesmo dia. Uma tentativa. No entanto, não consegue a assinatura do magistrado. Ela assim o faz e passa o dia sem conseguir falar com o juiz plantonista para buscar sua assinatura. O dia passa, até que ligo na CPP e uma servidora me diz para encaminhar a eles a decisão do juiz concedendo a liminar e o alvará feito pela servidora para análise. Feito isso no sábado a noite.

Acordo domingo com a esperança de que Danilo estivesse solto, afinal, já são mais de três dias de uma prisão totalmente ilegal. Mas para minha surpresa, ao conversar com o Cartório da CPP, a informação agora é outra. “Não iremos cumprir o alvará porque está sem a assinatura do juiz. Além de hoje ser domingo, temos que ligar para as Varas do Fórum Criminal para buscar maiores informações sobre ele”. Terceira pausa para a indignação e início de uma ira interna.

Acordo segunda-feira com uma leve esperança de ter dado certo. Volto a ligar na CPP e eles confirmam que agora só o soltariam com o alvará expedido pelo desembargador competente para julgar o HC. Ao telefone, o servidor diz que já conversou com o cartório da Câmara Criminal respectiva e que esta já está ciente. Pois bem. Já passam-se mais de 4 dias de uma prisão ilegal, porque não se tem um alvará, e, assim, ligo para a Câmara Criminal. Converso com o assistente do desembargador.

“Ah sim doutor, estamos sabendo da situação. Fique tranquilo. Em breve o desembargador vai reanalisar o pedido e dar a sua decisão”, ele diz.

“A liminar já foi apreciada e concedida. Ele só tem que expedir o alvará porque a secretária responsável esqueceu de expedir. Não teve recurso da acusação. Como ele vai reanalisar de ofício?, pergunto.

“Doutor, este é o procedimento. Não estou dizendo que ele irá revogar a decisão. Só que irá reanalisar, porque este é o procedimento”, ele rebate.

Encerra-se a ligação, aguardo por horas, faço uma petição no HC, que é digital, pedindo a expedição do alvará, argumentando sobre a prisão ilegal, e minutos depois recebo a decisão: “revogo a decisão liminar outrora proferida”. Quinto momento em que fico paralisado, não acreditando no que estava acontecendo. Ninguém acredita, defensores e estagiários esbravejam e se indignam juntos dentro de nossa sala no Fórum Criminal. Vamos ao STJ! Com o auxílio do colega responsável pelo Segundo Grau impetramos na mesma noite o HC.

Amanhece terça-feira. 5º dia com Danilo preso. A noite sai a decisão: concedida a liminar. Mais uma alegria daquelas. Finalmente justiça sendo feita! Até que um colega brinca lembrando que o alvará ainda não havia sido expedido. O momento de euforia passa, a ficha cai e o desespero novamente começa a bater.

Quarta-feira aguardo a publicação da decisão e a ordem para o cumprimento da decisão. No entanto, nada de sair. Já são 6 dias com Danilo preso ilegalmente. Na quinta-feira é publicada. Leio a decisão e há total omissão sobre qual autoridade seria a responsável pela expedição do alvará. Vou até o Cartório do juízo de 1o grau e o chefe diz que ainda não recebeu nenhuma informação a respeito. Volto pela tarde e ele reafirma que nenhuma ordem ainda foi passada a ele. Colega do 2o Grau entra em contato com a Câmara Criminal e nada também.

Sexta-feira. Ultrapassamos 8 dias de uma prisão que já possui duas ordens de soltura. Volto à Vara e nada. Um colega liga para a Presidência do Tribunal e dizem que receberam a ordem, e que quem cumpre é somente o juízo originário, sendo que acabaram de encaminhar tal ordem para ele. Volto à Vara, e procuro junto ao Chefe do Cartório a ordem. Sabe-se lá o que Danilo vem passando nesses tantos dias em uma prisão completamente superlotada. Enfim, volto à Vara, e quando chego já recebo a informação de que foi encontrada a ordem. Alívio! Porém, é tarde de sexta-feira. Assim, muito solicitamente, ele já elabora o despacho para que o juiz chegando na segunda-feira só o assine.

Pelo menos como as coisas parecem, ao fim, estarem encaminhadas. Aguardo até segunda-feira.  E esta, quando chega, já é o 11o dia de uma verdadeira batalha pela liberdade. Juiz assina e expede o alvará para a CPP. Alvará chega, mas não cumprem no mesmo dia. Ordem da casa. Algumas pesquisas são necessárias. Espero o outro dia. 12o dia.

Após analisado tudo o que era possível, depois de mais de 12 dias de uma saga, uma luta árdua, por uma liberdade, finalmente Danilo é liberado. Dessa maneira, como visto, esses casos ocorrem. A intenção desse artigo foi justamente demonstrar isso. Alguns com diferenças a mais, outros com maiores similitudes, mas ocorrem. Aqueles que não trabalham na seara criminal, talvez não conheçam o Direito Penal Real, que dribla magnificamente muitos daqueles dizeres e direitos contidos em nossas leis. No entanto, uma coisa eu posso garantir a todos, para que uma prisão seja determinada, em qualquer canto desse País, é muito fácil e rápido. Nem fundamentação é preciso, aliás. Bastando que sejam proferidas três palavras: “converto em preventiva”. E aqueles que prezam pela Lei e Constituição que se virem.

Philipe Arapian é Defensor Público do Estado de Goiás.


Foto: Canal Ciências Criminais

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