Honra de vidro: sobre a chamada legítima defesa da honra

 

Por Jacson Zilio no Conjur 

Quando CERVANTES escreveu o magnífico livro Don Quijote de la Macha, em 1605, a imagem social da mulher caracterizava-se pela forte influência religiosa (fidelidade, recato, bondade) e também pelo romantismo (sentimentalismo, individualismo, subjetivismo). Dulcinea, por exemplo, para Don Quijote, é rainha e senhora, bela e sobre-humana: “que sus cabellos son oro, su frente Campos Elíseos, sus cejas arcos del cielo, sus ojos soles, sus mejillas rosas, sus labios corales, perlas sus dientes, alabastro su cuello, mármol su pecho, marfil sus manos, su blancura nieve, y las partes que a la vista humana encubrió la honestidad son tales, según yo pienso y entiendo, que sólo la discreta consideración puede encarecerlas, y no compararlas.”[1] A jovem Marcela, no mundo real, já não cumpria as mesmas expectativas sociais. Apesar de rica, linda e cobiçada, protegida pelo tio, não queria casar-se porque, por ser tão jovem, não se sentia hábil para os encargos do matrimônio. Preferiu a vida de pastora. Converteu-se, assim, na cruel, pouco arrogante e muito desdenhosa mulher, causa então de todas as desgraças masculinas, de sofrimentos a suicídios. Grisóstomo, por exemplo, tirou a própria vida por conta de ciúmes, suspeitas e ausências de Marcela. Ela, no entanto, repudia a culpa e declara no velório: “Yo nascí libre, y para poder vivir libre escogí la soledad de los campos. Los árboles destas montañas son mi compañía, las claras águas destos arroyos mis espejos; con los árboles y con las aguas comunico mis pensamientos y hermosura. Fuego soy apartado y espada puesta lejos. A los que he enamorado con la vista ha desengañado con las palabras. Y si los deseos se sustentan con esperanzas, no habiendo yo dado alguna a Grisóstomo ni a otro alguno, el fin de ninguno dellos bien se puede decir que antes le mató su porfía que mi crueldad.”. E termina: “…y entiéndase, de aquí adelante, que si alguno por mí muriere, no muere de celoso ni desdichado, porque quien a nadie quiere, a ninguno debe dar celos; que los desengaños no se han de tomar en cuenta de desdenes. El que me llama fiera y basilisco, déjeme como cosa perjudicial y mala; el que me llama ingrata, esta cruel y esta desconocida, ni los buscará, servirá, conocerá ni seguirá en ninguna manera.[2]

Como se vê, a construção social da mulher má, perigosa, matável por não cumprir papéis desiguais impostos pelo universo patriarcal, não é nova. A honra que ela tem é honra de vidro. A honra da mulher se reduz a opinião boa que sobre ela se tem. “A boa mulher é um espelho de cristal brilhante e claro, que está sujeito a manchar-se e escurecer-se com qualquer respiração que a toque.”[3]  Mas se aí está a figura da “mulher como animal imperfeito”, desde Platão e Aristóteles, também está a resistência de quem não se dobra, presente no discurso irrespondível de Marcela. Nada obstante isso, as mulheres seguem morrendo e, quando excepcionalmente resistem fisicamente e matam os autores de maus-tratos, são tratadas de maneira desigual pelo direito penal.[4] Todo homicídio praticado por mulheres contra homens são qualificados. O caso de Judy Norman, nos Estados Unidos da América, é exemplar.[5] Por isso, mudar essa triste realidade é tarefa urgente, de homens e mulheres, mormente quando o cenário de mortes e violência parece não cessar. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal referendou, unanimemente, o entendimento de que é inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, historicamente utilizada nos juris populares, como excludente de ilicitude, para absolver homens que matam mulheres (ADPF n. 779). Com isso, em interpretação conforme a Constituição do artigo 25 do Código Penal, decidiu-se ainda pelo impedimento das partes utilizarem, no processo penal, qualquer argumento justificativo do tipo penal imputado ou investigado que tenha relação com a defesa da honra. Nessa situação, a retórica justificativa ofenderia os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A proteção da honra do homem, em tais casos, não seria tecnicamente legítima defesa, seja por falta do requisito da “agressão injusta”, seja porque se trata de bem personalíssimo, individual e próprio, não afetado por ato de terceiro.

Sem adentrar na discussão sobre o ponto que obstou o uso de determinada estratégia defensiva à luz do princípio da ampla defesa, o fato é que os fundamentos dogmáticos de direito penal, utilizados no decisum, precisam ser melhor esclarecidos.

O elemento fundamental da legítima defesa, consistente na ação agressiva, existe sempre que se está diante de uma determinada ação humana. Portanto, como função-limite, o conceito de ação humana exclui os casos de meros pensamentos e sentimentos, manifestações do inconsciente, manifestações derivadas de força física irresistível e movimentos reflexos. Assim, nos casos de feminicídios, as traições, como desrespeito aos deveres de fidelidade dos casamentos monogâmicos, quase sempre configuram ações humanas. Ao contrário, os meros ciúmes, paixões e emoções, que são apenas sentimentos,  não configuram ações humanas. De consequência, não integram o elemento da ação agressiva da legítima defesa. Esses aspectos internos, que caracterizam sempre um odioso direito penal de ânimo, são relevantes apenas para reduzir o juízo de censurabilidade que paira sobre quem realizou um tipo penal de injusto.

Mas essa agressão não basta para que se legitime a intervenção do direito de legítima defesa. Exige-se um complemento de qualidade da agressão: a ação agressiva, segundo o pensamento doutrinário dominante, precisa portar contrariedade formal e material com ordenamento jurídico, que não precisa ser contra uma norma penal concreta, senão que basta que provenha de ação humana dolosa que viole alguma norma existe em qualquer ramo do direito. Segundo essa fundamentação, a agressão ilícita se contentaria com a contrariedade geral, de norma que protege qualquer bem jurídico. A melhor fundamentação, contudo, é aquela que exige uma contrariedade que ofenda algum bem protegido pelo direito penal. Em outras palavras, para o estudo da legítima defesa só importa a agressão ilegítima que seja penalmente típica e antijurídica.[6] Logo, as traições conjugais ou outras estapafúrdias imaginações do universo machista, não ostentam qualquer relevância penal e, portanto, não se enquadram no requisito fundamental da agressão ilegítima penalmente típica e antijurídica. Ademais, a antijurididade da ação agressiva, tal como o conceito de ilicitude da teoria geral do delito, demanda que se tenha tanto desvalor do resultado como desvalor de ação.[7] O desvalor da ação não se confunde com desvalor de atitudes ou estados de ânimo do agente, que são irrelevantes para um direito penal indiferente ao caráter moral das pessoas.[8] O desvalor do resultado, por outro lado, exige lesão ao bem jurídico protegido pelo direito penal. Então, como o desvalor da ação e do resultado nos casos de traições conjugais estão localizados apenas no mundo ético e moral, não há que se falar de antijuridicidade como qualidade da ação agressiva, nem formal nem material.

Agora, para aqueles que sustentam que a legítima defesa pode proteger qualquer bem jurídico individual e que basta apenas contrariedade com alguma norma do ordenamento jurídico, o problema então se desloca da ação agressiva ilícita (do agressor) para a resposta defensiva (do agredido). Mas aqui também, sem nenhuma dúvida, não há espaço para o reconhecimento da defesa.

Ainda que obviamente a honra possa ser defendida por qualquer pessoa por legítima defesa – a agressão ofende um bem tipicamente protegido pelo direito penal e, portanto, é uma bobagem achar que não possa ser afetada por ato de terceiro -, a justificação da resposta não se dá sempre e a qualquer custo. É que a necessidade racional de resposta requer uma planificação idônea por meio de forma menos prejudicial ao agressor (princípio da menor lesividade).[9]

Para ser idônea, a resposta deve guardar correlação com a agressão. É uma relação de eficácia, ainda que parcial, que deve existir entre a defesa e o ataque. A defesa deve ter uma relação direta no tempo e no meio. Tem que expressar-se, portanto, como meio necessário e suficiente de proteção do bem jurídico. Assim, se a reação objetivamente não serve para afastar a ação agressiva, se objetivamente não é apta para eliminar, diminuir ou retardar a ação agressiva, então o meio utilizado não será racionalmente (moderadamente) necessário, mas apenas fruto de vingança. ROXIN dá uma bom exemplo: se alguém me agride fisicamente e eu respondo rasgando os pneus do seu carro, isso não está amparado pela legítima defesa.[10] Tampouco uma resposta fisicamente violenta é um medio apto para a defesa de ofensas verbais, por exemplo. Quando percebeu que Marcela (“esquiva hermosa ingrata”) estava prestes a ser seguida e perseguida por populares inconformados, logo após ela ter deixado o enterro de Grisóstomo (que se matou por não suportar o amor não correspondido), Don Quijote disparou um discurso ameaçador, apto para conter as agressões iminentes: “Ninguna persona, de cualquier estado y condición que sea, se atreva a seguir la hermosa Marcela, so pena de caer en la furiosa indignación mía. Ella ha mostrado con claras y suficientes razones la poca o ninguna culpa que ha tenido en la muerte de Grisóstomo, y cuán ajena vive de condescender con los deseos de ninguno de sus amantes, a cuya causa es justo que, en lugar de ser seguida y perseguida, sea honrada y estimada de todos los buenos del mundo, pues muestra que en él ella es sola la que con tan honesta intención vive.[11]

Percebe-se, pois, que toda resposta idônea deve guarda sintonia com a agressão. LUZÓN PEÑA afirmou que se a resposta é, desde o princípio, objetivamente irrelevante para evitar o perigo ou lesão ao bem jurídico, então já não se trata de ausência de necessidade concreta de defesa, mas sim de ausência absoluta de defesa. Segundo ele, “a conduta empregada precisa ser idônea a priori para proteger o direito frente a agressão. Se de início é incapaz, inadequada e inútil para esse objeto, não é só que seja um meio desnecessário, senão que não é defesa em absoluto.”[12] Enfim, ações violadoras do bem jurídico honra não podem ser respondidas com ações violadoras do bem jurídico vida, sexualidade ou integridade física, por conta de absoluta falta de correspondência, de idoneidade.

Por outro lado, toda resposta deve cumprir o princípio da menor lesividade ao agressor. Isso porque, no Estado Democrático de Direito, nem o autor de delito nem o agressor deixam de ser pessoas portadoras de direitos fundamentais.[13] Logo, o requisito da necessidade exige uma especial consideração ao agressor pela qualidade de pessoa humana e por razões de solidariedade social. É por essa razão que a defesa deve usar o meio disponível e adequado para proteção do bem jurídico, ou seja, deve materializar-se com menor perdimento ao agressor. Entre muitos meios idôneos disponíveis, o meio menos lesivo ao agressor é instrumento e procedimento obrigatório.

Por fim, não menos importante, é esclarecer que uma resposta necessária nem sempre é permitida (geboten). Nos casos de agressões ocorridas dentro de relações de garantia, impõe-se algumas restrições ético-sociais por questões político-criminais, pois existe aí uma sensível diminuição da função de prevalecimento do Direito, precisamente porque há uma obrigação de evitar danos aos demais (relação de solidariedade). Nem toda violência nas relações de garantia, que fundam uma situação de necessidade, pode legitimar o direito de legítima defesa, pois a permissibilidade exige também o cumprimento das funções político-criminais do direito penal (preventivos e de garantia). A concreção da permissibilidade das limitações racionais responde também ao princípio da intervenção mínima, porquanto onde é possível escapar da agressão ou aceitar pequenos danos sem ofensa à dignidade humana, não se justifica a violência dentro das relações de garantia. A legitimidade da defesa está sempre condicionada pela diminuição da violência social.

Talvez esse caminho pudesse ser trilhado mediante interpretação mais esclarecedora do artigo 25 do Código Penal, para excluir da justificação não apenas as agressões inseridas no âmbito de relações de garantia, mas também nas agressões por inimputáveis, insignificantes, provocadas, constitutivas de chantagem e aquelas inerentes à realidade brasileira que são provenientes de autoridades de segurança pública, as quais são as verdadeiras responsáveis pelo massacre diário das camadas subalternas. Esse último ponto, urgente, poderia estar dentro da ADPF 635.

Jacson Zilio

Doutor em Direito Penal e Criminologia/Universidad Pablo de Olavide/Espanha, Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná e Membro do Coletivo Transforma MP

[1] CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Editorial Castalia, 2000, p. 187.

[2] CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Editorial Castalia, 2000, p. 200.

[3] CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Editorial Castalia, 2000, p. 441.

[4] LARRAURI, Elena. Mujeres y sistema penal. Violencia doméstica. Buenos Aires/Montevideo: Editorial BdeF, 2008.

[5] State of North Carolina v. Judy Ann Laws Norman —n°161PA88— Supreme Court of North Carolina, Court of Appeals, 89 N.C. Aps. 384, 366 S.E. 2d 586 (1988).

[6] MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoría general del delito, 4° ed., Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, pp. 117-118; GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Justificación y exculpación en Derecho Penal español en la exención de responsabilidad por situaciones especiales de necesidad (legítima defensa, estado de necesidad, colisión de deberes, em ESER, Abin, GIMBERNAT ORDEIG, Enrique, PERRON, Walter (ed.). Justificación y exculpación en derecho penal (Coloquio Hispano-Alemán de Derecho Penal). Madrid: Servicio de Publicaciones de la Facultad de Derecho, 1995, p. 65; LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Aspectos esenciales de la legítima defensa. Barcelona: Bosch, 1978, pp. 481-494.

[7] HIRSCH, Hans Joachim. La antijuridicidad de la agresión como presupuesto de la defensa necesaria, em Derecho penal: obras completas, T. III. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2002, p. 210, sustenta, com razão, que o desvalor do comportamento do agressão desloca o critério da proporcionalidade, para se exigir ponderação de bens jurídicos em jogo.

[8] ZILIO, Jacson Luiz. Legítima defensa: las restricciones ético-sociales a partir de los fines preventivos y garantísticos del derecho penal. Buenos Aires: Didot, 2012, p. 134.

[9] Por exemplo, o Código Penal espanhol fala de “necesidad racional del medio empleado por parte del defensor” (n° 2 del art. 20-4º), o Código Penal brasileiro de moderação dos meios necessários (art. 25), o Código Penal portugués de “meio necesario” (art. 32) e o Código Penal italiano exige, além da “necessità”, que a defesa “sia proporzionata all`offesa” (art. 51).

[10] ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil – Band I – Grundlagen – Der Aufbau der Verbrechenslehre, München: Verlag C. H. Beck, 2006, p. 675.

[11] CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Editorial Castalia, 2000, p. 201.

[12] LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Aspectos esenciales de la legítima defensa. Barcelona: Bosch, 1978, pp. 546-547.

[13] IGLESIAS RÍO, Miguel Ángel. Fundamento y requisitos estructurales de la legítima defensa. Consideración especial a las restricciones ético-sociales. Granada: Comares, 1999, p. 183.

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