A lei que alterou a competência da Justiça Militar da União

Por Rômulo de Andrade Moreira, no site empório do direito.

Acabou de ser promulgada a Lei nº. 13.491/17, que entrou em vigor no dia 16 de outubro de 2017 e alterou o art. 9º. do Código Penal Militar. Doravante, os delitos “dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;  

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou  

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:

a) Lei nº. 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica;   

b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;  

c) Decreto-Lei nº. 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e  

d) Lei nº. 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral.”

Antes de analisarmos a mudança legislativa, lembremos que em 1996 este artigo foi alterado para estabelecer que “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.” (alteração feita pela Lei nº. 9.299/96).

Neste mesmo ano, e por força da mesma lei, alterou-se também o art. 82 do Código de Processo Penal Militar, para afirmar que, nada obstante se tratar de foro especial, a Justiça Militar (federal ou estadual, pois não se fez qualquer diferenciação) não seria mais competente para o julgamento de processo quando se tratasse de crimes dolosos contra a vida praticados por militares (dos Estados ou das Forças Armadas, pois tampouco se diferençou) contra civil.

Posteriormente, houve uma nova alteração no referido art. 9º., reafirmando-se a competência do Júri para a competência do julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por militares, desta vez, porém, ressalvando-se aqueles delitos praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565/86, o Código Brasileiro de Aeronáutica.”[1] (alteração ocorrida por força da Lei nº. 12.432/11). Assim, não mais se considerariam crimes comuns (sujeitos ao julgamento pelo Tribunal do Júri) os cometidos pelos integrantes da Marinha do Brasil, contra civis e dolosos contra a vida, nos casos do referido art. 303. Neste caso, a Justiça Castrense “recuperou” a sua competência.

Foi o primeiro retrocesso! Agora, vê-se, modifica-se-lho, mais uma vez, o parágrafo único do art. 9º. do Código Penal.

Lembremos, outrossim, que com a Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, a chamada Reforma do Judiciário (que, aliás, não reformou nada, muitíssimo pelo contrário, ao menos substancialmente), o § 4º. do art. 125 da Constituição Federal – que trata dos Tribunais e Juízes dos Estados – passou a ter a seguinte redação: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.” (grifei).

Nada obstante a “Reforma do Judiciário” não ter feito qualquer alteração nos arts. 122 a 124 da Constituição, que tratam da Justiça Militar da União, sempre entendemos, desde a primeira alteração feita no art. 9º. do Código Penal Militar (em 1996), que não se tratavam mais de crimes militares – não tinham, portanto, tal natureza -, os crimes dolosos contra a vida de um civil praticados por quaisquer que fossem os militares (das polícias militares estaduais ou das Forças Armadas), salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, por força da segunda alteração levada a cabo pela Lei nº. 12.432/11. E, se não eram mais crimes militares, por óbvio, a competência era do Tribunal do Júri, observando-se a competência constitucional estabelecida no art. 5º., XXXVIII da Constituição Federal.

Assim, objetivamente, concluíamos: quando se tratasse de crime doloso contra a vida praticado por militares (obviamente em serviço) contra civis, o delito não tinha mais a natureza de crime militar, devendo o julgamento, por conseguinte, ser realizado pelo Tribunal do Júri (salvo no caso do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica).

Por outro lado, se se tratasse de um homicídio praticado por militar contra outro militar, ambos em serviço, (conduta tipificada no art. 205 do Código Penal Militar), a competência para o processo e julgamento seria da Justiça Militar (estadual ou federal, conforme o caso). Aqui, evidentemente, não se feria a competência constitucional do Tribunal do Júri, pois a competência da Justiça Militar para julgar crimes militares (como é o caso do art. 205) também tem foro constitucional (arts. 124 e 125, §§ 3º. e 4º., da Constituição). É o que ocorre, por exemplo, no caso de foro por prerrogativa de função estabelecida na Constituição Federal (neste sentido, veja-se o Enunciado 721 da súmula do Supremo Tribunal Federal): um Deputado Federal não será julgado pelo Tribunal do Júri, tampouco um Magistrado ou um membro do Ministério Público (é difícil acreditar, mas é verdade!).

Agora, em razão da nova alteração, os crimes dolosos contra a vida cometidos pelos integrantes das Forças Armadas contra civil serão da competência da Justiça Militar da União, não se aplicando o procedimento do Júri.

Para tanto, exige-se, tão-somente, que a infração penal praticada pelo membro da Marinha, Aeronáutica ou do Exército tenha sido praticada no cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa ou de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante, ou, ainda, de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal, na forma do Código Brasileiro de Aeronáutica, da Lei Complementar nº. 97/99 (que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas), do Código de Processo Penal Militar e do Código Eleitoral.

Resta-nos, por fim, analisar a nova lei sob o prisma constitucional, perguntando se a norma viola a Constituição Federal. Antes, porém, reafirmo o meu entendimento segundo o qual em um Estado Democrático de Direito não se admite uma Justiça Militar, ao menos em tempo de paz e para julgar crimes cuja tipificação já se encontra na legislação penal ordinária. Admito a Justiça Castrense, apenas e excepcionalmente, para julgar crimes militares próprios (ou propriamente militares), ou seja, aqueles tipificados exclusivamente na legislação especial militar e, obviamente, cometidos em tempo de guerra. Eis o meu posicionamento.

De toda maneira, abstraindo-se a questão posta no parágrafo anterior, a existência da Justiça Militar no Brasil tem previsão constitucional (goste-se ou não!), por meio de normas, inclusive, oriundas do poder constituinte originário (arts. 124 e 125, §§ 3º. e 4º., da Constituição).

Voltando, então, à pergunta acima formulada, agora em outros termos, indago se poderia a lei ordinária retirar do Tribunal do Júri a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados pelos integrantes das Forças Armadas tendo como vítimas um civil? Creio que sim, nada obstante não me agradar nem um pouco a alteração legislativa.

Veja que a referida Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, a tal “Reforma do Judiciário”, não fez qualquer alteração nos arts. 122 a 124 da Constituição, restando, portanto, inalteradas a organização, estrutura e a competência da Justiça Militar da União. O art. 124, por exemplo, afirma, desde a origem, competir à Justiça Militar (da União) processar e julgar os crimes militares definidos em lei e praticados pelos integrantes das Forças Armadas. Os policiais militares estaduais (incluindo os bombeiros) serão julgados pela Justiça Militar dos Estados, nos termos do art. 125, §. 4º.    Ao contrário, a referida emenda à Constituição ressalvou expressamente a competência do Tribunal do Júri quando a vítima for civil e o crime (doloso contra a vida) foi praticado por policial militar em serviço.

Assim, seria possível uma alteração no art. 9º. do Código Penal Militar, retirando da competência do Tribunal do Júri os crimes dolosos contra a vida praticados pelos integrantes das Forças Armada contra civil. Ocorreu, a meu ver, o seguinte: doravante, os crimes dessa natureza, praticados por aqueles militares (e naqueles contextos) passaram a ter natureza militar (tal como ocorria antes da alteração de 1996) e, por conseguinte, o julgamento deve se dar no âmbito da Justiça Castrense Federal, tal como lho impõe o art. 124 da Constituição. Aqui, a própria Constituição excepciona a competência do Tribunal do Júri, como se dá também em relação ao detentores da prerrogativa de foro estabelecida pela Constituição Federal (relembrando o Verbete 721 da súmula da Suprema Corte). Uma tal alteração já não seria possível quando se tratasse de delito da competência da Justiça Militar estadual, tendo em vista os termos expressos do art. 124, § 4º.

Em resumo, tendo em vista a nova lei, não mais podem ser considerados crimes militares aqueles praticados pelos integrantes das Forças Armadas (e naquelas condições estabelecidas nos três incisos do § 2º., do art. 9º., do Código Penal) e, não sendo crimes militares, o Juiz Natural será o Conselho de Justiça da Justiça Militar da União. No que se refere aos policiais militares, e mesmo em relação aos integrantes das Forças Armadas (quando o delito foi praticado fora daqueles contextos), nada mudou, ou seja, o crime doloso contra a vida de um civil não é crime militar, cabendo o respectivo julgamento ao tribunal do Júri, na Justiça Comum, federal ou estadual.

Para concluir, reafirmo a minha discordância da alteração legislativa, pois entendo que quanto mais se restringir a competência da Justiça Militar (seja a da União, seja a dos Estados), melhor será para continuarmos lutando por um Estado Democrático de Direito. E quão dura e penosa tem sido esta luta!

Rômulo de Andrade Moreira é associado do Coletivo, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


[1] “Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos: I – se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim; II – se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional; III – para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis; IV – para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21); V – para averiguação de ilícito. § 1° A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado. § 2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada. § 3° A autoridade mencionada no § 1° responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.”


Foto: José Cruz/ABr

 

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