Membros do Ministério Público se posicionam contra o programa “Escola Sem Partido”

O site Justificando fez matéria sobre o Manifesto do Transforma MP contra o projeto chamado de Escola sem Partido, publicado na semana passada. Confira:

Membros do Ministério Público brasileiro se posicionaram contra o programa “Escola Sem Partido”. Os integrantes, que fazem parte do Coletivo Transforma MP, afirma, em manifesto, que o objetivo do projeto é limitar a difusão de conhecimento plural. Na nota, afirmam que “uma educação que está presa a algumas concepções morais e religiosas (…) não é uma educação libertadora e, na medida em que se mostra castradora, deixa de favorecer ao pleno desenvolvimento humano. Não é, pois, de fato, educação”.

Na última terça-feira, 13 de novembro, uma comissão especial da Câmara dos Deputados analisou o Projeto de Lei da Escola Sem Partido, 7180/2014. O PL “inclui entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.

Leia abaixo a nota do coletivo na íntegra:

“O coletivo por um Ministério Público transformador (Transforma MP), associação formada por membros do Ministério Público dos Estados e da União, pautando-se nos primados da democracia e da cidadania, e em meio às graves ameaças aos princípios que envolvem o direito à educação e à cultura, insculpidos em nossa Carta Política de 1988, pelas razões abaixo apontadas, vem manifestar sua contrariedade aos projetos de lei e quaisquer propostas que visam incluir entre as diretrizes e bases da educação nacional o “Programa Escola Sem Partido”.

O tal “Programa Escola Sem Partido” tem por objetivo limitar, pré-estabelecer ou censurar a difusão de conhecimento e informação em estabelecimentos educacionais quanto a determinados temas, especialmente os de direitos humanos. Pretende garantir que estudantes e professores estejam submetidos a constante vigilância para vedar “a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.  Estabelece, nas escolas e salas de aula, verdadeiro clima de desconfiança, de ameaça, de constrangimento que são incompatíveis com as atividades de ensinar e aprender.

As diferentes concepções de mundo e o pensamento crítico estão intimamente ligados a uma educação emancipadora, que vise à transformação social, nos termos estabelecidos pela Constituição Federal. Além disso, nosso ordenamento jurídico estabelece como princípios basilares do direito à educação: a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; a valorização dos profissionais da educação; a gestão democrática do ensino público e a garantia do padrão de qualidade. Uma “educação” que está presa a algumas concepções morais e religiosas, proibida de questionar, de ressignificar, de comparar formas diversas de pensamento, não é uma educação libertadora e, na medida em que se mostra castradora, deixa de favorecer ao pleno desenvolvimento humano. Não é, pois, de fato, educação.

Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade n. 5.537-AL, suspendeu os efeitos de lei do estado de Alagoas que tratava sobre assunto similar, asseverando que “a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias constituem diretrizes para a organização da educação impostas pela própria Constituição”. A lei suspensa por decisão da suprema corte, na esteira do “Programa Escola Sem Partido”, previa a “neutralidade política, ideológica e religiosa” do Estado. Segundo o Ministro Roberto Barroso, “a ideia de neutralidade política e ideológica da lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância” e “implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala”.

Nunca é demais ressaltar que a pretensa “neutralidade ideológica” não existe e ela não está presente no “Programa Escola sem Partido”. Segundo já bem ressaltado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, na nota técnica n. 01/2016 que se manifestou sobre a inconstitucionalidade do Projeto de Lei Federal n. 867/2015, o que se revela no tal programa “é o inconformismo com a vitória das diversas lutas emancipatórias no processo constituinte; com a formatação de uma sociedade que tem que estar aberta a múltiplas e diferentes visões de mundo; com o fato de a escola ser um lugar estratégico para a emancipação política e para o fim das ideologias sexistas – que condenam a mulher a uma posição naturalmente inferior, racistas – que representam os não-brancos como os selvagens perpétuos, religiosas – que apresentam o mundo como a criação dos deuses, e de tantas outras que pretendem fulminar as versões contrastantes das verdades que pregam”.

O direito dos pais a que seus filhos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções não é absoluto e nem ilimitado e especialmente não pode se sobrepor ao próprio direito à educação dos filhos. É nesse sentido que o parágrafo “3” do Protocolo de São Salvador (Decreto n. 3.321/1999) aduz que “De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.”  

E, mais adiante, no art. 13, “2”, estabelece que “Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz.”

De outro lado, pelo art. 13, § 1º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto n. 591/1992), os Estados-partes nesse pacto – e o Brasil é signatário – “reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz “.

O Estado brasileiro, portanto, não é neutro. Deve ensinar, por imperativo constitucional, os valores da democracia, da liberdade, do pluralismo e do respeito à dignidade da pessoa humana.

O Brasil assumiu, em 2015, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas, compromissos para alcançar objetivos de Desenvolvimento Sustentável globais, dentre os quais o de assegurar “que todas as meninas e meninos completem o ensino primário e secundário livre, equitativo e de qualidade, que conduza a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes”. Assumiu também o compromisso de “até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável”.

Lamentável o desvio de energia de agentes e poderes públicos e os gastos de recursos públicos com a tramitação de projetos de lei flagrantemente inconstitucionais e divorciados dos diagnósticos dos problemas que de fato impedem a melhoria da qualidade da educação brasileira, notadamente quando estratégias e metas dos Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação — elaborados de maneira participativa e por imposição constitucional — são quase que inteiramente descumpridas.

Enquanto se discutem propostas repletas de conceitos vagos e controversos —“neutralidade”, “doutrinação ideológica”, “audiência cativa”, etc. — dois milhões e quinhentos mil adolescentes e crianças estão fora da escola, apenas 26% das crianças do quartil mais baixo de renda estão em creches, 24,1% dos jovens de 16 anos não concluíram o ensino fundamental, as taxas de evasão escolar no ensino médio voltaram a crescer em 2014/2015,  apenas 44,8% das escolas públicas possuem biblioteca ou sala de leitura e 40,2% dos docentes não possuem formação superior compatível com as disciplinas que lecionam, apenas para citar alguns dos enormes e reais problemas da educação no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Educação Básica (2018).

Assim, a propositura e tramitação dos mencionados projetos de lei e a propagação de infundada e injusta suspeição sobre toda a atividade docente, além de violar princípio constitucional de valorização dos profissionais da educação escolar, vai na contramão de estudos e experiências em todo o mundo que demonstram que o professor é a figura central no processo educacional. Ao contrário de censura prévia e restrição de liberdade de expressão e de cátedra, experiências internacionais bem-sucedidas apostaram na maior autonomia dos educadores e em investimentos significativos em remuneração, valorização social da carreira docente, em formação inicial e continuada de tais profissionais.

O Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) demonstrou sua preocupação com o tema, recomendando ao governo brasileiro a adoção de atitudes para conduzir uma revisão dos projetos de lei que tratam dos projetos de ‘escola sem partido’. Segundo a ONU, eles poderiam colidir com a base dos direitos humanos internacionais e a Constituição Federal que protegem o direito à opinião, sem interferências, e o direito a buscar, receber e partilhar informações e ideias, independentemente de fronteiras ou meios. Além disso, “o projeto poderia retirar das salas de aula discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como diversidade e direitos das minorias”.

Importante notar que o Ministério Público Brasileiro tem reconhecido seu importante papel como órgão de preservação dos valores democráticos na educação. O Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União aprovou enunciados elaborados pela Comissão Permanente de Educação, do Grupo Nacional de Direitos Humanos do órgão. O Enunciado 02 estabelece que “são princípios fundamentais imanentes à educação brasileira as liberdades fundamentais de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, a gestão democrática do ensino público, cabendo ao Ministério Público adotar as providências cabíveis no sentido de coibir tentativas de se estabelecer proibição genérica e vaga de controle do conteúdo pedagógico desenvolvido nas escolas”.  O Enunciado 03 dispõe que “cabe ao Ministério Público adotar medidas que visem garantir a igualdade efetiva de acesso e permanência na escola por parte de todos e todas, nos termos do artigo 206, I, da Constituição Federal, incluindo-se no projeto político pedagógico – PPP e regimento escolar, de todos os níveis de ensino, conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero, de raça ou etnia, de enfrentamento à homofobia, à transfobia, à violência doméstica e familiar contra a mulher, a pessoa idosa e a pessoa com deficiência”.

Assim, o COLETIVO POR UM MINISTÉRIO PÚBLICO TRANSFORMADOR,  comprometido com a ordem democrática e constitucional e com o irrestrito respeito aos direitos humanos, à liberdade e à diversidade, manifesta seu total repúdio a todas as propostas legislativas e políticas vinculadas ao dito “Programa Escola Sem Partido” entendendo-o frontalmente contrário aos princípios estabelecidos na República Federativa do Brasil.

Brasília, 12 de novembro de 2018.

Coletivo por um Ministério Público Transformador – COLETIVO TRANSFORMA MP”


Foto: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados

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