Não é meteoro

 

Por Élder Ximenes Filho* no GGN

Quando era criança afirmavam que os dinossauros extinguiram-se por não se adaptarem às rápidas mudanças climáticas das sucessivas glaciações. Isto era óbvio. Havia a maluca teoria do meteoro. Uma desrespeitosa bobagem contraintuitiva. Pois não é que da década de 1980 em diante virou o jogo! Achados em todo o mundo comprovaram que na mesma camada geológica de há 65 milhões de anos havia depósitos uniformes de mineral cuja origem só poderia ter sido aquela[1]. Agora ninguém discute e os filmes-catástrofe esbaldam-se explorando o medo do próximo impacto. Se você um dia pesquisou sobre isto, suas redes sociais irão encher-se semanalmente com a advertência “Nasa alerta para meteoro que passará próximo à Terra” dia tal…

Aprendamos umas coisinhas. Primeiro: a ciência evolui e as teorias sucedem-se com base em “fatos”, não opiniões. Segundo: anedotas podem virar certezas e vice-versa. Terceiro: o mercado nunca perde a piada e tudo torna em mercadoria (inclusive curiosidades e temores).

Aí o leitor desocupado, desses estimados por Cervantes, tecla no moderno “pai dos burros” e vê que aquela foi apenas a última de CINCO comprovadas extinções globais. Cada uma delas – mais ou menos explicadas – eliminou entre 60 e 99% de todas as espécies vivas [2] e abriu caminho para o domínio de outras espécies, que evoluíram ocupando os nichos ecológicos vagos. Há de tudo nas outras teorias: supervulcões (tipo o Yellowstone), clima (tipo aquecimento global) e vírus (tipo SARS-CoV-2)… Com o tempo virão as certezas e não precisamos de todas elas para findar esta introdução para o que desejamos falar.

Nada podemos fazer contra bólidos gigantes nem processos geológicos que operam na casa dos bilhões de anos. Mas sobre o resto exercemos, sim, algum poder. No mínimo sobre o último fator, pois o ser humano é a própria causa – direta ou indireta – da possível extinção nesta nossa era geológica, a do Antropoceno[3]. A sexta extinção global que abrirá espaço, talvez, para os distantes descendentes das baratas.

Convido-vos a uma séria brincadeira: imagine comigo um elegante insetão de jaleco e óculos, nada kafkiano, num congresso científico. El[4] está expondo sua controversa teoria sobre os fósseis mais abundantes da Terra, cujos espécimens há um bilhão e meio de anos já haviam desenvolvido tecnologia atômica e até enviado artefatos para Marte. O discurso será mais ou menos assim:

Colegas, permitam-me aqui expor sobre aqueles curiosos mamíferos que outrora dominaram todo este belo planeta. Aqueles que espalharam por todos os lugares os templos fascinantes chamados “Shoppings”, crendo que sua religião os tornaria especiais[5]. Além destas certezas claras, a discussão de nossos melhores arqueólogos e insetopólogos é sobre qual hipótese explicaria a extinção repentina de 10 bilhões de seres orgulhosos e autossuficientes.

Reconheço que minhas ideias ainda são minoritárias. Defendo ser possível que uma civilização quase tão sofisticada quanto a dos insetos caminhe pacificamente para a própria aniquilação. Proponho que a cultura é um fator tão importante para a sobrevivência das espécies quanto os fatores naturais. A teoria baseia-se nos registros recém-decifrados das memórias dos aparatos indefectivelmente encontrados junto a cada um dos fósseis: os chamados “celulares”. Não sem controvérsias, proponho aqui uma problematização sobre como o ápice da inteligência daquela espécie levou-a a criar uma superconsciência, uma conexão permanente entre todos que levou ao decaimento intelectual de cada um. Sabe-se que tais aparelhos no começo davam informações sob demanda. Estas informações permitiram tomadas de decisão cada vez mais complexas e velozes. Os indivíduos puderam compartilhar dados, ideias e afetos; organizando atuações conjuntas. Até revoluções aconteceram e havia muito otimismo no começo do fim…

Todavia, a partir de certo momento ainda incerto – porém feliz para nós insetos – todos aceitaram uma funcionalidade a mais que lhes pôs a perder a Terra inteira. Uma explicação preliminar é necessária. Sabe-se pelo registro dos longos ritos de passagem denominados “BBBs” que, naquela espécie de primatas, o sentimento era muito mais relevante do que o raciocínio abstrato. Um desejo firme sobrepujava quaisquer demonstrações lógicas, mesmo ante o risco de eliminação.

Este fator, que não se sabe ainda ser genético ou culturalmente adquirido, somou-se inadvertidamente àquelas inocentes funcionalidades de enviar fotos de felinos e canídeos, como nós atualmente fazemos e que é o único legado humano para o futuro.

Voltando ao tema, sabemos que os antigos humanos passaram a receber naquelas caixinhas não apenas informações sobre o que havia para ver no momento. Eram agora instruções permanentes sobre o que deviam sentir diante de cada coisa. Se era bom ou mau, desejável ou odioso… já não precisavam decidir, pois tudo já vinha pronto e organizado. Assim, podiam gastar o tempo fazendo outras coisas; inclusive, nada. Especialmente nada! Ao mesmo tempo em que a tecnologia produzia maravilhas, um imobilismo universal dominou as gentes. As máquinas já aprendiam sozinhas e aprimoravam suas programações – sempre realizando mais e melhor o que lhes pediram para fazer no início: ocupem-nos, divirtam-nos, vivam-nos…

Muitos registros perduraram, mas são textos incompletos e misturados[6] nos HDs que ainda resistiram. Deles aprendemos alguns termos e conceitos[7] usados pelos antigos humanos. Igualmente, soube-se ter havido resistência de alguns profetas que eram chamados de “João Batista” ou “Pessoal dos Direitos Humanos“. Alguns alertavam que uma sociedade cada vez mais baseada em tecnologias complexas estava sendo governada por pessoas sem o mínimo conhecimento científico. Pior: eram escolhidas por massas de indivíduos que não viam importância nisto nem nas relações de causa-e-efeito independentes de suas vontades[8]. Afinal, havia o reforço do mesmo-pensar; o conforto do não-saber; a alegria curta (mas repetível) do nem-aí. Era fácil para umas poucas pessoas, chamadas então de “Bilionários” ou “Corporações”, dominarem aquelas tantas que estavam tão unidas na tarefa de separarem-se. Havia entidades chamadas “Governos”, mas não se sabe ao certo para que serviam. Quando alguns indivíduos partiam para a luta, havia leis, dogmas e drones – que sempre defendiam as “Corporações”. Muros foram erguidos (todos chamados “Berlim-México”). Todavia as principais barreiras eram separações virtuais, que coartavam o próprio desejo de movimento ou mudança[9]. Era regulado tanto o pensar como o caminhar, pois a Terra – como agora é dos insetos – já não era para todos. Cada humano, no entanto, tinha direito ao seu IP e ao seu reconhecimento facial – tudo conforme sua casta designava desde o nascimento[10].

Os celulares tornaram-se a parte principal do controle e da vida. A inteligência artificial dos algoritmos passou a organizar movimentos e a publicar livros e notas que apareciam assinadas por entidades mitológicas chamadas “Homens de Bem”. Outro fenômeno comprovado foram as notícias chamadas de “face-news” que calculadamente levavam a mais imobilismo. Mais do que isto, os indivíduos que defendiam ser possível outra organização social eram ridicularizados e perseguidos. Eram chamados “Marielles” ou “Esquerdistas”. Assim foi até que as últimas dissidências acabaram; os textos antigos foram editados; a história foi reescrita; os heróis morreram e os mártires foram esquecidos[11]. A este fenômeno davam também várias denominações como “Ponta da Praia”, “Gulag” ou “Block”. A estabilidade da sociedade então durou bastante tempo, pois ninguém mais pensava que a história poderia ser diferente. Assim, olvidaram a regra natural de que a permanência da vida exige mudança – quer seja geográfica, quer seja social.

Em paralelo, enquanto os humanos tentavam ir contra as leis naturais, todos os outros seres vivos continuavam a evoluir e a reagir aos estímulos do ambiente. Os códigos genéticos que puderam ser extraídos dos fósseis humanos mostram que eles (como quaisquer animais ou vegetais) vinham enfrentando com sucesso quase todas as doenças. Pareciam ter aprendido a conviver com as espécies mais resistentes, longevas e, por isto mesmo, mais evoluídas da Terra: os vírus e as bactérias.

Todavia, isto mudou a partir de certos momento e local – que puderam ser  determinados pelo padrão das mortes, além dos caóticos textos que resistiram ao tempo. A penúltima pandemia durava três anos e parecia estar sendo debelada com isolamentos e vacinas. Além disto, algumas medidas contra a exploração descontrolada da natureza começavam a ser adotadas. Para azar de todos, existia um lugar onde aqueles fenômenos sociais estavam mais avançados do que em qualquer outro lugar – ao ponto de não tomarem os cuidados mínimos e se tornarem num viveiro gigante de novas cepas daquele vírus originalmente pouco letal. O nome verdadeiro desta região do globo é desconhecido, pois todos referiam-se a ela por expressões que nós insetos evitamos usar em público.

Os registros originais ficaram particularmente confusos, devido aos bombardeios atômicos que todo o território sofreu. Além desta medida de esterilização, houve a ocupação das porções ainda habitáveis por tropas de libertação, que diziam trazer algo então conhecido como “Democracia” (uma coisa sobre a qual não temos suficiente clareza, e os humanos também não). De todo modo, era necessário evitar a saída daquela população cujo extermínio parecia necessário para a segurança das demais. O plano, de início, pareceu funcionar e as poucas pessoas do resto do mundo que prestaram atenção àquilo tudo aplaudiram a atuação das “Corporações” de segurança.

Todavia, não perceberam o erro fatal. Na sub-região antigamente conhecida como “Amazonian-rainforest” ou “Agro-É-Tudo” já tinha acontecido um contato entre seres humanos e algum animalzinho desconhecido. Um vírus deste misturou-se com o da COVID e esta variação extremamente eficiente (que demorava anos para manifestar-se) saltou para um soldado das tropas internacionais[12]. Este indivíduo voltou para casa e começou viajar pelo mundo dando palestras sobre controle de doenças e eugenia (atividade muito prestigiada na época). Só perceberam o problema quando era tarde demais.

O último texto produzido, não sabemos se pelo último humano ou alguma fiel IA, legou o nome àquela era – a qual agora nós, insetos, conhecemos como “Bozonário-tardio” ou simplesmente “Imbeciloceno”.

Final do discurso. Seguem aplausos e algumas objeções bem-educadas.

*Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP

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  1. Cientistas Luis and Walter Alvarez (pai e filho); irídio; efeito estufa, plantas morreram, Cratera de Chiclub; perfurações in situ de 2016 etc, etc…
  2. Períodos Ordoviciano-siluriano (440 milhões de anos atrás), Devoniano (365 milhões de anos), Permiano-triassico (250 milhões), Triassico-jurassico (210 milhões) e a do Cretáceo-terciário (a de Hollywood mesmo).
  3. A era em que o ser humano passou a interferir realmente nos processos planetários.
  4. “El” em lugar de “Ela” ou “Ele” – pois estes insetos evoluíram tanto que, mais do que não-binários, garantiram logo ser hermafroditas para não haver mais confusão, como na era de ouro da mitologia grega.
  5. Em aparelhos de ressonância nuclear comprova-se que a mesma região do cérebro é estimulada pela contemplação de símbolos religiosos ou de grandes marcas comerciais. Além disto, quando um arqueólogo não sabe pra que servia aquela construção, carimba logo ‘templo’.
  6. Você não acha que todos os papiros, pergaminhos e tabuinhas de barro foram encontrados e decifrados, né?
  7. Atualmente há uns quarenta sistemas de escrita ainda não decifrados. E o Champolion da Rosetta, mais do que competente, foi muito é sortudo!
  8. Melhor exemplo: Carl Sagan em vários escritos, especialmente no “O Mundo Assombrado pelos Demônios”.
  9. Como deus e Buñuel fizeram entre os níveis da montanha do Purgatório de Dante e as portas do filme O Anjo Exterminador.
  10. Por favor, não cuidem apenas do “número da besta” em Apocalipse 13:16-18, lembrem da primeira viagem oficial de parlamentares do PSL, para a China, em janeiro de 2019. Foram conhecer o sistema de reconhecimento facial ali extensamente utilizado – inclusive para potencializar a repressão a dissidentes e minorias étnicas. Igualmente, há interesse geral no sistema israelense Pegasus – que consegue invadir e copiar o conteúdo de celulares sem qualquer clique do usuário.
  11. Faça um favor a si e escute Redemption Song, de Bob Marley.
  12. A famigerada “Gripe Espanhola” era, na verdade, estadunidense. Foi levada para a Europa por tropas na Primeira Guerra Mundial e, tendo pragado a Espanha intensamente, espalhou-se pelo mundo. Ideologia aplicada às pandemias não é novidade.

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