Nota de repúdio à Portaria que restringiu a noção de trabalho escravo

"Por outro lado, aceitar que o consentimento do trabalhador vitimado pelo trabalho escravo afasta a ilegalidade da conduta patronal inverte a lógica jurídica de proteção ao hipossuficiente, no caso, o próprio trabalhador, que poderá, a partir de agora, “consentir” que seja submetido a trabalho forçado ou a jornada exaustiva."

O Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP – vem a público repudiar o conteúdo da Portaria nº 1.129, de 13 de outubro de 2017, assinada pelo Ministro de Estado do Trabalho, o Sr. Ronaldo Nogueira de Oliveira, que restringiu, de maneira autoritária, sem o imprescindível e prévio debate nas Casas Legislativas de nosso país, a noção de trabalho análogo à de escravo para efeitos da concessão do seguro-desemprego dos trabalhadores resgatados dessa forma de violência.

Com efeito, desconsiderando os avanços da doutrina e da jurisprudência sobre o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que entende como análogo a de escravo o trabalho forçado, aquele exercido com jornada exaustiva, o que sujeita o trabalhador a condições degradantes de trabalho ou o que restringe, por qualquer meio, a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, a malfadada portaria passa a exigir que a configuração do ilícito trabalhista dependa da ausência de consentimento do trabalhador ou da existência de limitação ao seu direito de ir e vir, além de condicionar a inclusão do empregador na “Lista Suja do Trabalho Escravo” à previa lavratura do Boletim de Ocorrência pela autoridade policial que participou da fiscalização.

A portaria em questão é ilegal porque restringe ilegitimamente o teor de texto normativo primário (LEI), afastando, sem o necessário debate público, repita-se, o entendimento sedimentado de que tipo penal em questão tutela mais do que a mera liberdade de ir e vir da vítima: ele objetiva garantir o respeito da dignidade da pessoa humana, dos direitos trabalhistas e previdenciários, indistintamente considerados (Supremo Tribunal Federal: RE 459.510/MT, 511.849-AgR/PA e outras).

Além disso, a Corte Superior Brasileira já teve oportunidade de se manifestar no sentido de que a escravidão não pode ser examinada sob os olhos do legislador de 1940 ou mesmo do 1888, quando editada a Lei Áurea, pois a escravidão moderna é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos (Inq. 3.412/AL).

Por outro lado, aceitar que o consentimento do trabalhador vitimado pelo trabalho escravo afasta a ilegalidade da conduta patronal inverte a lógica jurídica de proteção ao hipossuficiente, no caso, o próprio trabalhador, que poderá, a partir de agora, “consentir” que seja submetido a trabalho forçado ou a jornada exaustiva, na contramão dos compromissos internacionais firmados pela República Federativa do Brasil – os mesmos utilizados pelo Sr. Ministro do Trabalho para fundamentar a sua portaria!

O ato normativo em análise também é ilegal porque viola a independência entre as instâncias cível e criminal ao exigir a apresentação de Boletim de Ocorrência pelo Auditor-Fiscal do Trabalho responsável pela operação, na medida em que, mesmo a sentença absolutória no juízo criminal, permite a responsabilização civil quando não for reconhecida a inexistência material do fato (Código de Processo Penal, art. 66).

Além de tudo isso, a edição da malsinada portaria, somada à mudança recente na titularidade da Secretaria de Inspeção do Trabalho e a redução drástica dos valores financeiros destinados à fiscalização do trabalho, desconsidera o internacionalmente reconhecido esforço nacional de erradicação do trabalho escravo, realizado pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, consubstanciando-se, em última instância, em retrocesso social, econômico e político que ficará marcado na história de nosso país, e somente beneficiará os maus empregadores, aqueles que se beneficiam da mão-de-obra mais precarizada, mais vulnerável, em violação aos princípios da necessária valorização do trabalho humano e da livre e justa concorrência no mercado (Constituição Federal, art. 170).


Crédito da foto: Pixabay/rodrigoandrade3880

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