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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

Investigação criminal supervisionada em caso de prerrogativa de foro

Artigo do Procurador de Justiça e integrante do Coletivo Transforma MP, Prof. Rômulo Moreira, no Conjur

No último dia 6 de setembro, o ministro Alexandre de Moraes confirmou a necessidade, sob pena de nulidade, de autorização judicial prévia para a investigação de agentes públicos com prorrogativa de foro. A decisão monocrática foi tomada em liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.447.

Ao deferir parcialmente a medida cautelar, o ministro também determinou o imediato envio dos inquéritos policiais e procedimentos de investigação, que tenham sido instaurados no Tribunal de Justiça do Pará pela polícia judiciária e pelo Ministério Público, para imediata distribuição e análise do desembargador-relator, a quem caberá analisar se há justa causa para a continuidade da investigação.

Na ação constitucional, alegou-se afronta à Constituição a respeito do foro por prerrogativa de função, uma vez que a jurisprudência da Suprema Corte afirma a necessidade de supervisão judicial desde a abertura do procedimento investigatório até o eventual oferecimento da denúncia.

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, “a Constituição Federal estabeleceu, como regra, o julgamento dos processos judiciais em dupla instância, isto é, inicialmente por um juiz (primeira instância da justiça) e, posteriormente, por um colegiado (segunda instância). Por outro lado, o relator observou que, no contexto estadual, a Constituição Federal estabeleceu a competência privativa dos Tribunais de Justiça para julgar juízes estaduais (e do Distrito Federal) e membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade”.

Segundo ele, “as hipóteses de foro por prerrogativa de função são excepcionais ressalvas aos princípios constitucionais do juiz natural e da igualdade e, nessa condição, devem ser interpretadas de maneira estrita, sob pena de se transformar a exceção em regra”, ressaltando “que, conforme a jurisprudência do STF, as investigações contra autoridades com prerrogativa de foro no Supremo submetem-se ao prévio controle judicial, o que inclui a autorização judicial para o início das investigações.”

Essa decisão do ministro foi confirmada, por unanimidade, pelo plenário da Suprema Corte, na sessão virtual finalizada no último dia 20 de novembro, quando foi confirmada a necessidade de autorização judicial prévia para a investigação de agentes públicos com prerrogativa de foro.

Em seu voto no mérito da ação, o relator reiterou “que, de acordo com a jurisprudência do STF, as investigações contra autoridades com prerrogativa de foro na Corte se submetem ao prévio controle judicial, o que inclui a autorização judicial para as investigações. Esse mesmo entendimento tem sido aplicado pelo Supremo na solução de controvérsias relacionadas aos tribunais de segundo grau.

Pois bem.

Esta decisão da Suprema Corte segue decisões anteriores no sentido de que quando o investigado tem prerrogativa de foro, a respectiva apuração criminal deverá ser “supervisionada” pelo respectivo órgão jurisdicional competente.

Com efeito, a 2ª Turma concedeu Habeas Corpus de ofício para extinguir, por ausência de justa causa, a Ação Penal nº 933, ajuizada contra um deputado federal, acusado de praticar um crime eleitoral. Em questão de ordem, os ministros entenderem que houve nulidade na investigação com relação ao réu, uma vez que o procedimento foi supervisionado por Juízo incompetente. De acordo com os autos, o parlamentar foi indiciado em inquérito supervisionado por Juiz de primeiro grau quando cumpria mandato de prefeito. Recebida a denúncia em primeira instância, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal após a diplomação do réu como deputado federal.

Segundo ficou definido nesta decisão, a competência para supervisionar investigação de crime eleitoral imputado a prefeito é do Tribunal Regional Eleitoral, segundo destacou o relator da ação, ministro Dias Toffolli, citando o Enunciado 702 da súmula do Supremo Tribunal Federal. No caso, segundo o ministro, houve indícios de que o então prefeito teria praticado crime eleitoral por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em troca de votos, valendo-se do cargo que ocupava. “Nesse contexto, não poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro grau e muito menos poderia a autoridade policial direcionar as diligências apuratórias para investigar o prefeito e tê-lo indiciado”, disse o relator. Dessa forma, segundo ele, “a usurpação da competência do Tribunal Regional Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de nulidade aquela investigação realizada em relação a este detentor de prerrogativa de foro”. Seguindo o entendimento do relator, os ministros da Segunda Turma votaram pela concessão de habeas corpus de ofício para extinguir a ação penal originária por ausência de justa causa, nos termos do artigo 395, III do Código de Processo Penal, diante da nulidade do procedimento investigatório.

Da mesma maneira, no julgamento do Inquérito nº 2.116, em que o Ministério Público Federal pedia a apuração de possível envolvimento de um senador em suposto esquema de desvio de verbas federais em obras municipais, o plenário decidiu que o inquérito deveria prosseguir sob a fiscalização da Suprema Corte.

Também no julgamento do Inquérito nº 3.305, no qual um deputado federal era acusado de fazer parte de quadrilha destinada ao desvio de recursos públicos. Neste caso, a denúncia foi rejeitada em razão de o inquérito ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados. O então relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, ressaltou que o entendimento do Supremo Tribunal Federal era de que a competência do Tribunal para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Uma vez identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à corte. “É inadmissível que uma vez surgindo o envolvimento de detentor de prerrogativa de foro, se prossiga nas investigações”, afirmou. Seu voto foi acompanhado por unanimidade.

Com o mesmo entendimento, a 1ª Turma determinou o arquivamento do Inquérito nº 3.552, no qual um deputado federal era acusado de contratação de uma funcionária fantasma em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Os ministros acolheram a questão de ordem apresentada pela defesa no sentido de que o Inquérito nº 3.552 era um desmembramento do Inquérito nº 3.305, arquivado pela Primeira Turma, em julgamento anterior, por ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados, usurpando a competência do Supremo. O então relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, observou que o entendimento do Supremo é de que a competência para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Dessa forma, assim que for identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à corte. 

Também neste mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes determinou o arquivamento do Inquérito 2.963, contra um senador, sua esposa e quatro filhos por suposta prática dos crimes de falsidade ideológica, desvio de contribuições previdenciárias e crimes contra a ordem tributária. O inquérito foi instaurado pela polícia federal, por requisição do Ministério Público Federal. A decisão, conforme o ministro, ocorreu sem prejuízo de que novo procedimento de investigação venha a ser instaurado para apurar os fatos citados na notícia-crime. Porém, ele entendeu que o inquérito deveria ser trancado por não ter sido requerido pelo procurador-geral da República. O relator observou que a requisição para a instauração do inquérito pela polícia federal foi realizada por procurador da República, sem qualquer delegação do procurador-geral da República.

Naquela oportunidade, o relator afirmou: “Como cediço, o inquérito para investigar fatos em tese praticados por membro do Congresso Nacional, na qualidade de coautor ou autor, não só é supervisionado pelo STF, como tem tramitação eminentemente judicial e não obedece ao processamento dos ordinários inquéritos policiais”, salientando que, nesses casos, a abertura da investigação apenas se dá no Supremo Tribunal Federal, por requisição do procurador-geral da República ou de subprocurador-geral da República que atue na corte mediante delegação.

Em outro julgamento, o plenário decidiu, na Petição nº 3.825, que “a abertura de inquérito originário no STF depende de requisição do procurador-geral da República e de supervisão desta Corte”. Para o relator, “há vício de origem na instauração do presente procedimento, ao menos no que diz respeito ao membro do Congresso Nacional investigado”. Isso porque, no caso, o delegado de Polícia Federal apenas comunicou ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria-Geral da República a instauração do inquérito, ao mesmo tempo em que determinou a prática de diversos atos de investigação. “Agindo dessa forma, a Polícia Federal, de acordo com requisição de procurador da República oficiante em 1ª instância, chamou para si atribuição que é do procurador-geral da República, exercida perante o Supremo Tribunal Federal”, afirmou o relator.

Outrossim, o ministro Teori Zavascki determinou o arquivamento da Petição nº 5.220, lembrando que cabia ao procurador-geral da República oferecer inquérito, com exclusividade, para apuração de fatos delituosos envolvendo detentores de prerrogativa de foro na Suprema Corte. “A atuação do titular da ação penal, nas investigações perante o Supremo Tribunal Federal, ganha contornos especiais, tanto que é irrecusável a promoção de arquivamento de inquérito apresentada pelo procurador-geral da República, em especial quando ausentes elementos à formação da sua opinio delicti”, ressaltou o ministro. No caso, conforme o relator, o próprio chefe do Ministério Público assinalou que não há notícia de que o suposto autor do referido vazamento de informações seja detentor de prerrogativa de foro no âmbito do Supremo, “o que, por si só, impede a instauração de inquérito perante esta Corte”.

Mesmo quando se trata de governador, a investigação criminal será levada a cabo pelo Superior Tribunal de Justiça, não havendo necessidade, para tanto, de autorização da Assembleia Legislativa, que somente será de rigor para admissibilidade da acusação. Neste sentido, o ministro Luiz Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, autorizou a abertura de investigações envolvendo dois governadores. O ministro apontou que, em situações envolvendo governadores, a corte tem reconhecido a possibilidade de que processos e julgamentos dependem de autorização do Poder Legislativo. “Todavia, é bem de ver que, nesta fase inicial de investigação, ainda não é o caso de requerer autorização prévia das assembleias legislativas”, escreveu (Sindicância nº 456 — Processo nº. 2015/0006612-0).

Sobre a investigação criminal supervisionada judicialmente, assim afirmou o ministro Gilmar Mendes:

Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem, por crime comum, perante o Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do Supremo Tribunal Federal. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal.  A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República. No exercício de competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e Regimento Interno, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. Questão de ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. Conforme o Supremo Tribunal Federal: A outorga de competência originária para processar e julgar determinadas Autoridades (detentoras de foro por prerrogativa de função) não se limita ao processo criminal em si mesmo, mas, à base da teoria dos poderes implícitos, estende-se à fase apuratória pré-processual, de tal modo que cabe igualmente à Corte — e não ao órgão jurisdicional de 1ª instância — o correlativo controle jurisdicional dos atos investigatórios (Supremo Tribunal Federal: Reclamação 2349/TO, — Reclamação nº 1150/PR). A inobservância da prerrogativa de foro conferida a Deputado Estadual, ainda que na fase pré-processual, torna ilícitos os atos investigatórios praticados após sua diplomação (Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 94.705/RJ, relator Ministro Ricardo Lewandowski). A partir da diplomação, o Deputado Estadual passa a ter foro privativo no Tribunal de Justiça, inclusive para o controle dos procedimentos investigatórios, desde o seu nascedouro até o eventual oferecimento da denúncia” (Inquérito nº 2.411/MT, Informativo 483).

Não obstante tais decisões, sempre nos pareceu um tanto quanto estranho que um órgão jurisdicional “supervisione” uma investigação criminal e depois processe e julgue o mesmo caso penal (sendo o relator também o mesmo, o que é mais grave).

Com efeito, sob o ponto de vista do sistema acusatório, e em respeito às suas regras e aos seus princípios, tal “investigação supervisionada” soa, no mínimo, inadequada e estranha aos postulados constitucionais. Por enquanto, porém, é o que temos nesta verdadeira “torre de babel” que é a investigação preliminar no processo penal brasileiro.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

O Trilho e o Veneno

Arquivo / EBC

Por Leomar Daroncho e Lincoln Cordeiro no Correio Braziliense

A propósito do Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos – 3 de dezembro -, a NetFlix lançou a minissérie “Heróis dos Trilhos” (The Railway Men: The Untold Story of Bhopal 1984), anunciada pelo streaming como “Drama. Histórico. Suspense”. A produção indiana é inspirada em história real: a maior tragédia da indústria química, em Bhopal, Índia, em 1984.

Sem pretender dar spoiler, registre-se que milhares de trabalhadores morreram quando uma unidade da Union Carbide India Limited (UCIL) liberou o gás isocianato de metila (MIC). A série mostra o trágico fim de milhares de moradores, passageiros e funcionários da ferrovia, próxima à fábrica de agrotóxicos.

Nesta hecatombe, estima-se em cerca de 15 mil o número de mortes imediatas e calcula-se que cerca de 500 mil pessoas sofreram danos pela exposição ao gás altamente tóxico. Passados 39 anos, ainda há um exército de sequelados: 25 mil casos de cegueira e 50 mil incapacitados, com doenças crônicas, além de uma geração de crianças debilitadas. Dados chocantes, como o caso dos médicos heroicos que morrem envenenados fazendo boca a boca nas vítimas, são relatados na pesquisa que resultou no romance histórico de Javier Moro: “Meia-noite Em Bhopal”.

Há especial destaque para as estratégias empresariais para lidar com a exposição, que também estão presentes na saga brasileira dos agrotóxicos: negar dados científicos, disseminando dúvidas e ameaças contra pesquisas que apontam danos ao meio ambiente e à saúde das populações expostas ao veneno. Em Bhopal, q ocultação de informações técnicas, sob o pretexto do sigilo industrial, prejudicou o tratamento das vítimas.  

Outra estratégia recorrente é culpar as vítimas, acusadas de não usar equipamentos de suposta proteção e não seguir recomendações de segurança, algumas delas impraticáveis. No limite, levantam a suspeita de sabotagem. A culpa seria de terceiros.

No Brasil, Paulínia, em São Paulo, já provou do veneno dos agrotóxicos, diante do desastre, com danos localizados, na fábrica de agrotóxicos da Shell/Basf. Investigações do Ministério Público do Trabalho constataram a contaminação dos solos, da água e do ar por substâncias com potencial teratogênico (danos na gestação), genotóxico (danos genéticos) e carcinogênico (câncer). A Ação judicial, no caso, resultou um acordo, em 2013, pelo qual as empresas, sem assumir a culpa, destinaram R$ 200 milhões a pesquisas e ao tratamento de vítimas de intoxicação. Parte do valor beneficiou a construção de centros de pesquisa e tratamento do câncer, inclusive o conceituado Hospital do Câncer de Barretos. Também se assegurou a indenização e o tratamento vitalício a mais de mil vítimas.

Paulínia não encerra a tragédia brasileira com os agrotóxicos. Disputamos o posto de maior mercado consumidor de agrotóxicos, desde 2009, com frequentes medidas governamentais e legislativas liberando e flexibilizando o uso de produtos tóxicos banidos nos países de origem. O gigantesco volume de veneno é espalhado pelas regiões agrícolas criando um rastro de enfermidades agudas (instantâneas) e crônicas (como o câncer), que é silenciado pela deficiência na estrutura de saúde e pelas dificuldades de notificação.

Em “La Argentina Fumigada”, a jornalista argentina Fernanda Sández relata a saga da ciência diante da indústria química que investe na “opacidade”, no “silêncio”, na reação às “perguntas incômodas” e no “negacionismo científico”, um quadro agravado pela complacência das autoridades.

Assim como os trabalhadores e moradores de Bophal não tinham conhecimento dos riscos da indústria que os incapacitou ou matou, brasileiros das fronteiras agrícolas não estão informados dos riscos dos agrotóxicos, presentes no ar, na água potável e nos alimentos com resíduos de substâncias, muitas proibidas noutros países.

Nas fronteiras agrícolas a exposição vem sendo associada a casos de câncer, malformações, desregulação endócrina, depressão, suicídios e puberdade precoce de crianças, como no caso da Chapada do Apodi, no Ceará, pelo intenso uso do veneno.

Como convém à disputa pela audiência, a apocalíptica trama indiana destaca os heróis ferroviários. O saldo fatal de intoxicados seria muito pior sem o heroísmo que salvou vidas. No Brasil, em que se insiste na flexibilização e no estímulo ao uso de mais veneno, não há heróis, mas serão muitas as vítimas enquanto permanecer o silêncio perturbador da sociedade.

Leomar Daroncho e Lincoln Cordeiro são Procuradores do Trabalho

Austeridade fiscal versus Direitos Humanos: explicações básicas de economia para juristas

Por Gustavo Livio no GGN

Juristas preocupados com a efetividade dos direitos fundamentais precisam começar a prestar mais atenção a temas econômicos. É preciso entender que a desenfreada busca por superávits fiscais contínuos tem impacto direto e negativo sobre as políticas públicas que se destinam a concretizar os preceitos constitucionais. Enxugar o orçamento público é, no fim das contas, retirar dinheiro do SUS, do INSS, da educação pública, da cultura, do meio ambiente etc. E aqui cabe uma observação inaugural: pouco importa o que você acha a respeito do tamanho que o Estado deve ter. Defenda o Estado mínimo à vontade, mas saiba que o faz em contrariedade à Constituição, que elencou vasto rol de direitos fundamentais para os quais o orçamento deve se adequar. Há nítida contradição entre restrições jurídico-fiscais e as diretrizes constitucionais de concretização de direitos sociais. É a política fiscal que deve(ria) se adequar à Constituição, não o contrário. Em outras palavras, quem fala de direitos humanos sem se importar com desenvolvimento econômico e com orçamento fiscal está fadado a cumprir o papel de Sísifo.

                Como escrevo essencialmente para juristas, tentarei ser o mais didático possível para mostrar que temas econômicos não são bichos de sete cabeças. Há duas políticas econômicas centrais: a política fiscal e a política monetária. Foquemos na primeira.

                A política fiscal trata basicamente do orçamento público, seu tamanho e suas escolhas alocativas. A política fiscal possui dois lados: o lado da arrecadação e o lado das despesas. Pelo lado da arrecadação (receitas), o que acontece quando o Estado cobra tributos? Ele retira riqueza do setor privado. Do outro lado (o das despesas), o que acontece quando o Estado gasta? Ele despeja recursos na economia. Com isso, percebemos uma primeira característica da política fiscal: ela é essencialmente redistributiva, o que significa dizer que o Estado desloca a riqueza de um lugar para outro. E pode deslocar tanto de cima para baixo (tributação progressiva + políticas de distribuição de renda para os mais pobres) quanto de cima para baixo (tributação regressiva + taxas básicas de juros estratosféricas).

                Mas será que o Estado precisa arrecadar antes de gastar? A resposta, embora contraintuitiva, é não. Estados que emitem sua própria moeda (ou seja, possuem soberania monetária) não precisam de receitas tributárias ou de venda de títulos para financiar seus gastos exatamente porque a emissão da moeda precede cronologicamente a receita tributária e o recolhimento de recursos via títulos da dívida pública. Soberania monetáriasignifica a capacidade do Estado de aumentar a base monetária sempre que desejar.

                O que são políticas de austeridade fiscal? Antes de entendê-las, precisamos fazer um mergulho nas divergências do pensamento econômico. De forma muito resumida, duas correntes historicamente se digladiam sobre o papel do Estado na economia. A primeira delas é a corrente composta de um conjunto de teorias de matriz neoclássica, que hoje é tida como a ortodoxia econômica. Em geral, os ortodoxos contraindicam políticas fiscais expansionistas. Para eles, o ativismo fiscal do Estado produz um efeito de deslocamento do investimento privado (conhecido como crowding out). Existiria relação de concorrência – e não de complementariedade – entre investimento público e investimento privado, de modo que a ampliação dos gastos públicos geraria retração da atividade privada. Jonh Cochrane, famoso defensor dessa corrente, argumenta que “cada dólar de aumento da despesa do Estado tem de corresponder a menos um dólar de investimento privado. Os empregos criados pelo investimento em incentivos são compensados pelos empregos perdidos devido ao declínio do investimento privado”. Como o investimento público, por definição (!), é menos “eficiente” (!) do que o privado, o expansionismo estatal pode até gerar crescimento do PIB no curto prazo pelo aumento imediato da demanda agregada, mas a médio e longo prazos geram apenas inflação e desequilíbrio na medida em que o aumento da demanda não é acompanhado pelo aumento da oferta. Por trás desse pensamento está a crença de que o mercado é dotado de mecanismos estabilizadores que induzem equilíbrio automático e alocação ótima dos recursos escassos, e se o Estado entra na equação tudo o que ele pode fazer é perturbar esse equilíbrio. Os ortodoxos acreditam que o crescimento econômico é resultado essencialmente do aumento de produtividade (a demanda é um componente secundário). Se o Estado quiser ajudar, deve cortar tributos e reduzir sua atuação ao máximo. A estratégia keynesiana (que veremos na sequência) não pode funcionar porque todo dinheiro que o Estado injeta na economia deve ser, antes, arrecadado via tributos ou empréstimos, de modo que o Estado não pode criar nova demanda, mas apenas transferir riqueza de um grupo para outro.

                Seguindo essa ordem de ideias, as políticas de austeridade, embora já fossem defendidas com outras roupagens desde sempre, ganharam força após a crise de 2008. O pano de fundo foi o aumento da dívida pública dos países europeus e dos EUA, principalmente em razão dos pacotes fiscais de socorro aos bancos tidos como “grandes demais para falir” somado ao pífio crescimento econômico registrado no período pós-crise (afinal, a dívida pública se mede como uma porcentagem em proporção ao PIB. A dívida pública brasileira hoje, por exemplo, gira na casa de 72% do PIB. Como consequência, se não há crescimento do PIB, a dívida tende a aumentar) (1). A tese da austeridade fiscal sustenta basicamente que o corte de gastos do Estado proporciona crescimento econômico na medida em que eleva a confiança (atenção para a confiança!) dos agentes privados. Isso acontece por dois mecanismos: redução da taxa de juros e\ou tributos mais baixos. Gastos menores do governo abrem espaço para a redução da carga tributária e das taxas de juros, o que inspira a confiança nos agentes econômicos, que, por sua vez, conseguem antecipar esses resultados que ocorrerão no futuro e então voltam a investir\consumir no presente. Como o Estado iniciou um processo de redução, os investidores privados podem confiar que não contarão com o obstáculo do Estado e então passam a investir mais e assim se reinicia a crescimento econômico. Portanto, em momentos de crise, o Estado deve cortar gastos.

                Do outro lado, as teorias heterodoxas (bastante inspiradas no pensamento de Keynes) argumentam que o motor do crescimento econômico é a demanda agregada. Esse é o centro de tudo: o setor privado só volta a investir e a contratar mais funcionários se houver demanda efetiva. As análises ortodoxas são muito psicologizantes (“confiança”, “credibilidade”) e se baseiam mais em humores do que na materialidade econômica. Além disso, as correntes heterodoxas sustentam que o investimento público não compete necessariamente com o investimento privado. Muito ao contrário, ele costuma funcionar como estimulante do setor privado. Gastos do governo e investimentos públicos são componentes autônomos que estimulam tanto no curto quanto no longo prazo a trajetória de crescimento do PIB. Isso ocorre, em grande parte, porque existe um efeito multiplicador fiscal que indica que cada R$ 1,00 injetado na economia eleva o produto agregado em mais do que o valor original. O bolsa-família, por exemplo, tem um multiplicador médio aproximado de 1,78, o que significa que cada real investido nesse programa aumenta em média 1,78 do produto agregado (PIB).

                O nível de emprego depende do nível agregado de investimentos; os investimentos, por sua vez, dependem do nível de demanda agregada (ninguém vai investir se não tiver perspectiva de que o produto será vendido) e da taxa de juros. A demanda agregada responde a uma equação muito simples: Y = C + I + G + (E – I). Demanda agregada (Y) é igual ao somatório do consumo das famílias (C) + investimentos (I) + gastos do governo (G) + saldo do balanço de pagamentos (simplificando, exportações – importações). Só que o consumo (C) e os investimentos (I) são variáveis autorreferidas (dependentes), o que significa que uma oscila em função da outra. Em momentos de estagnação ou de depressão, famílias e empresas estão endividadas e preferem poupar a consumir; mesmo que o crédito esteja barato, não há estímulos de demanda para iniciar novos ciclos de investimento. A balança de pagamentos (saldo de tudo que entra menos tudo que sai do país) até pode, teoricamente, salvar a economia pelo estímulo externo (um boom de commodities), mas num país continental como o Brasil tem efeitos apenas regionais. Restam os gastos públicos, única variável exógena dependente apenas da vontade política do governo. Quando a economia está em recessão\estagnação, o nível de investimentos privados e do consumo das famílias tende a estagnar, de modo que a expansão dos gastos públicos induz o setor privado a voltar a investir e contratar mais funcionários, o que aumenta a renda agregada e a economia então volta a crescer. Durante momentos de estagnação\depressão, a atuação anticíclica do Estado é fundamental para retomar o dínamo da atividade econômica porque as outras variáveis (C e I) não possuem estímulos de demanda. Pense na construção de uma estrada: durante uma crise, o governo anuncia uma licitação, a empresa vencedora tem garantida a demanda (a demanda vem na frente do investimento) e por isso contrata mais funcionários, compra matérias-primas, aluga máquinas e os estímulos econômicos vão se diversificando por uma teia extremamente capilarizada que aumenta o nível geral de emprego e renda.

                Com isso percebemos uma cena curiosa: se a dívida pública se mede em proporção ao PIB e se o gasto público é um elemento central para o crescimento econômico (principalmente em períodos de crise ou de estagnação), então chegamos à conclusão de que os déficits públicos podem perfeitamente reduzir a dívida pública se a taxa de crescimento econômico alcançado for superior à taxa de crescimento dos gastos. Além disso, com o crescimento do PIB tende também a crescer a receita tributária, elevando a arrecadação. Como já vimos que tributos não financiam gastos do Governo e que não é necessário que a arrecadação de impostos preceda a realização de gastos, então mudamos nossa percepção sobre a dívida pública: ela é um instrumento extremamente útil na concretização de objetivos politicamente eleitos pelo Estado (no nosso caso, estamos falando da concretização dos direitos fundamentais e dos objetivos previstos no artigo 3º da Constituição).

                Tudo isso significa que a política fiscal deve ter flexibilidade para atuar ao redor do ciclo econômico de modo a induzir o desenvolvimento nacional (o que é sinônimo de concretizar paulatinamente os direitos fundamentais sociais). De modo geral, em momentos de crise, o Estado deve atuar deficitariamente para dinamizar a economia e estimular o crescimento. E ele faz isso criando demanda na frente. A teoria heterodoxa argumenta que os déficits públicos geram receitas para o setor privado e os superávits, ao contrário, enxugam dinheiro do setor privado. Poderia comprovar essa afirmação com mais algumas equações, mas creio que a afirmação é lógica o bastante para não correr o risco de perder a atenção do leitor.

                A divergência jurídica diz respeito ao seguinte: a teoria ortodoxa recomenda normas fiscais rígidas que não abram espaço para o Estado aumentar atuar deficitariamente de forma contínua. A teoria heterodoxa, ao contrário, recomenda flexibilidade, pois os ciclos econômicos variam entre momentos de expansão e de retração, e então o Estado deve estar livre oscilar seu orçamento ao redor dos ciclos como indutor do desenvolvimento econômico. Déficits públicos são saudáveis porque injetam dinheiro na economia quando ela se encontra anêmica.

                Mas e a dívida pública? Esse é o ponto central da discussão. Os pregadores do evangelho da austeridade conseguiram disseminar com muito sucesso uma analogia bastante funesta entre a dívida pública e a dívida familiar. O Estado é como uma família, dizem, e não pode se endividar para além das suas receitas. Bem, vamos com calma. Em primeiro lugar, é preciso tomar nota do terrorismo ideológico que utiliza a dívida pública como “fator espantalho” para argumentar a favor da indispensabilidade das políticas de austeridade (que, a propósito, são muito lucrativas para a elite porque geralmente vêm acompanhadas de processos de privatização e venda de ativos). A anunciação do apocalipse da dívida pública é extremamente funcional para os interesses das elites burguesas porque elas não têm nenhum interesse em participar da redistribuição da política fiscal. Elas não gostam dessa ideia de “redistribuir”.

                Vamos tratar de desmistificar o problema da dívida pública. Em primeiro lugar, não há nenhuma comparação legítima entre a dívida pública e a dívida familiar porque o Estado tem algumas coisas que uma família não tem. A primeira delas é a soberania monetária. O Estado, como emissor da moeda nacional, pode injetar dinheiro na economia a partir do nada. Não é verdade que primeiro o Estado tem que arrecadar para depois gastar. Se você não acredita em mim, acredite em André Lara Resende: “Só o Estado é capaz de criar poder aquisitivo sem poupança prévia. No mundo contemporâneo, só ele e seus concessionários, os bancos com acesso ao banco central, podem criar poder aquisitivo não lastreado em algum ativo existente” (2). Se você não acredita nele, acredite em Paul Krugman, Nobel de economia: “O que o Fed faz, quando assim o quer, é comprar ativos – normalmente letras do Tesouro, também conhecidas como dívidas do governo no curto prazo. Porém, de uns tempos para cá, passou a adotar uma variedade muito mais ampla de alternativas. Também concede empréstimos diretos aos bancos, mas isso é efetivamente a mesma coisa. O aspecto crucial é onde o Fed consegue fundos para comprar os ativos. E a resposta é que os cria a partir do nada” (3). O Estado pode aumentar sua base monetária a qualquer momento. Com isso, o mito de que o Estado precisa primeiro arrecadar para depois gastar não se sustenta. A conclusão é que não existe o menor risco de que um Estado monetariamente soberano deixe de pagar suas dívidas denominadas em moeda nacional. Por isso é tão importante distinguir dívida interna de dívida externa. A dívida externa realmente oferece riscos de pagamento na medida em que o Estado não tem nenhuma ingerência sobre a moeda estrangeira; mas a dívida interna não corre risco de não ser paga. Logo, os exemplos de comparação com a Argentina, a Grécia ou a Itália só podem ser tentativas de tumultuar o debate. A Argentina tem um problema crônico de dívida externa desde a década de 1980. A Grécia e a Itália abdicaram de sua soberania monetária em favor do Euro. Não existe nenhum exemplo histórico de Estado nacional que tenha “declarado falência” de dívida denominada em moeda nacional soberana, mas há um punhado de exemplos de Estados que declararam insolvência de dívida externa. Se você não acredita em mim, acredite em André Lara Resende novamente: “Existe risco na dívida pública denominada em moeda estrangeira, mas não existe risco de crédito na dívida pública denominada em moeda nacional” (4). Por óbvio, isso não significa que o Estado possa sair por aí imprimindo papel-moeda (hoje, aumentando os números no computador) para resolver seus problemas. Os gastos públicos podem exercer efeito inflacionário em uma economia já aquecida, e por vezes o superávit fiscal é recomendável. O ponto é que a persistência irritante de obter superávits fiscais contínuos atrapalha o desenvolvimento nacional e impede a concretização das promessas constitucionais sem que exista uma justificativa razoável para que o Estado imponha a si próprio a camisa de força da austeridade.

                O Brasil possui 335 bilhões de dólares de reservas cambiais. Não temos rigorosamente nenhum problema com dívida externa. Nossa dívida interna é moderada e está na casa dos 73% do PIB. A título de comparação, a dívida dos EUA hoje é 130% do PIB, a do Japão é de 266%, a da Inglaterra de aproximadamente 100% do PIB. E podemos afirmar com tranquilidade que nenhum desses países vai “dar calote” em sua dívida interna. Portanto, no caso do Brasil, a dívida pública não passa de “fator espantalho” para disseminar medo e inclinar o debate público a favor das políticas de redução do Estado com base em analogias estúpidas com países que nada têm a ver com o nosso. Esse negócio de “rombo fiscal” não passa de terrorismo ideológico-midiático para desviar sua atenção do que realmente importa: que o orçamento deve se adequar às promessas constitucionais e não o contrário e que os déficits públicos não são, em si mesmos, problemáticos.

                De modo geral, as políticas de austeridade não funcionam em nenhum de seus lados. Não reduzem a dívida pública porque o gasto do Estado é um componente decisivo do PIB, e como a dívida pública se mede em proporção ao PIB, então a queda no ritmo de crescimento econômico eleva a proporção dívida\PIB. É claro que podemos achar exceções em que políticas de austeridade funcionaram para reduzir a dívida, mas como regra geral os cortes drásticos no gasto público têm o efeito inverso. Ao contrário da promessa, a austeridade fiscal não é expansionista (ou seja, não estimula o crescimento do PIB) porque não existe uma “fada da confiança” que vai despertar os “ânimos” dos agentes econômicos e fazer com que eles voltem a consumir e a investir. Ainda que o mercado possa ficar “animado” com as expectativas de redução dos gastos públicos, esse é um efeito indireto, futuro e efêmero que raramente compensa os efeitos diretos, líquidos e certos resultantes da redução da demanda agregada (redução do elemento “G” na equação) que acontece aqui e agora. O corte de gastos em momentos de crise apenas contribui para agravá-la. Se você não acredita em mim, acredite no insuspeito FMI e no estudo de Nicoletta Batini: “Retirar estímulos fiscais demasiado depressa nas economias em que a produção já está contraindo pode prolongar as suas recessões sem gerar a esperada poupança fiscal. Isso é particularmente verdade se a consolidação se centrar em torno de cortes na despesa pública” (5). Passados quase 15 anos da crise de 2008, as dívidas europeias continuam altíssimas e o crescimento econômico durante esse período foi pífio. A França está com uma dívida de 98% (em 2010 era 85%); A dívida espanhola bate 115% do PIB (era 68% em 2011) e a portuguesa 113% (era 100% em 2010). A dívida pública italiana está batendo 143% (em 2010 era 119%) mesmo após sucessivos pacotes de corte de gastos. Ao contrário, veja o que acontece com a China, que cresce estupendamente sob forte coordenação e impulso do Estado (e possui dívida pública em torno de 21% do PIB). Como a taxa de crescimento do PIB é superior à taxa do crescimento dos gastos públicos (e é assim porque o gasto público estimula o gasto privado), então ela pode atuar deficitariamente e ainda assim reduzir sua dívida. No caso do Brasil, podemos ver que a dívida pública, ao invés de decrescer, aumentou desde a inauguração das políticas de austeridade fiscal no ano de 2015 com o Ministro Joaquim Levy.

Fonte: Bacen

                No final das contas, a austeridade fiscal não é um “remédio amargo”, é um veneno. A ideia de um “remédio amargo” traz consigo a falsa crença em um sacrifício imediato para ganhos posteriores. A experiência histórica tem demonstrado que os ganhos posteriores não vêm, embora os sacrifícios sejam enormes, principalmente para os destinatários privilegiados das políticas públicas (pobres e negros).

                Como afirmei em outra oportunidade, é preciso fixar três premissas: “a) A política fiscal deve ser instrumento de concretização dos objetivos do artigo 3º, CF e dos direitos fundamentais. O “tamanho” do Estado deve ser robusto o suficiente para englobar esse programa. Não é a Constituição que deve caber no orçamento, é o orçamento que deve ser suficiente para efetivá-la; b) Políticas de austeridade, além de contraproducentes do ponto de vista econômico, restringem a efetivação do programa constitucional; c) O Estado precisa de ativismo fiscal para concretizar a Constituição. Isso significa atuação pujante do Estado como indutor do desenvolvimento e efetivador de políticas públicas. Normas fiscais rígidas baseadas em “metas fiscais” são problemáticas por natureza. O Estado deve ter flexibilidade para atuar ao redor do ciclo econômico, estimulando a economia em momentos de anemia e atuando em equilíbrio\superávit nos momentos de expansão” (6).

                Tal como o antigo teto de gastos (EC 95\16), o denominado “Regime Fiscal Sustentável”, recentemente aprovado como Lei Complementar 200\23, é uma norma fiscal que congela o gasto público em uma dada proporção das receitas. E esta talvez seja a maior vitória do neoliberalismo: dominar de tal forma o pensamento econômico que até governos progressistas passam a defender e propor políticas de austeridade fiscal. 

                O Novo Arcabouço Fiscal (NAF) possui uma série de mecanismos técnicos que não tenho como destrinchar aqui. Em essência, alça a “sustentabilidade da dívida pública” como o principal objetivo do orçamento do Estado brasileiro. O programa social da Constituição está, portanto, subordinado à falácia da “sustentabilidade da dívida pública”, que, na prática, significa uma algema autoimposta do Estado a si próprio como agente econômico promotor de desenvolvimento econômico.

                A LC 200\23 determina que a despesa pública primária só pode crescer na medida do IPCA + uma proporção da variação do aumento da despesa em relação ao ano anterior (70% se for cumprida a meta de resultado primário e 50% se não for cumprida), com um piso de 0.6% de aumento real e um teto de 2.5% de aumento real. Se o teto de gastos permitia apenas a correção pelo IPCA, o atual arcabouço fiscal permite a correção pelo IPCA e mais uma proporção da variação da evolução da despesa (art. 4º).

                Em termos práticos, se a meta de resultado primário (excluídos os juros da dívida) do ano anterior for cumprido, o crescimento real da despesa pode chegar a 70% da variação real da receita primária neste mesmo ano, limitado ao teto de 2.5% e ao piso de 0.6%. Se a receita crescer 10% de um ano para outro, por exemplo, as despesas só podem aumentar 7% em termos reais, mas como este valor é superior ao teto de 2.5%, então este será o limite de expansão real dos gastos públicos. O ponto é que, novamente, o orçamento público está limitado à expansão real em apenas 2.5% em relação ao ano anterior. Para se ter uma ideia, entre 2003 e 2010, o crescimento real médio dos gastos foi de 5.2%. Entre 2010 e 2016, foi de 3.5%. O gráfico abaixo, elaborado por David Deccache, demonstra a discrepância na série histórica entre os gastos primários realizados efetivamente (linha azul) e o crescimento das despesas adotando o cenário mais otimista (2.5% de crescimento a.a: linha cinza). Se o NAF estivesse vigente desde 2003, perderíamos muita coisa em termos de políticas públicas.

                Fonte: Elaboração de David Deccache.

                Quero finalizar com um segundo problema, uma contradição entre a LC 200\23 e uma norma constitucional fundamental: os pisos constitucionais da saúde (15%) e da educação (18%). Como os pisos constitucionais incidem sobre a receita resultante de impostos (art. 212, CF) e da receita corrente líquida (art. 198, §2º, I), o crescimento das receitas vem acompanhado de uma expansão proporcional destes gastos. Simplificando, se as receitas crescerem em 10%, os gastos com saúde e educação também devem crescer 10% (afinal, eles incidem diretamente sobre as receitas). Só que o NAF estabeleceu um teto de 2.5%, o que gerará conflito evidente entre as despesas. Se a arrecadação subir 10%, saúde e educação também terão de crescer 10%, mas o teto geral de crescimento é de 2.5%, o que gerará evidente problema de composição com as demais receitas, que terão de decrescer muito para acomodar o crescimento da saúde e da educação. Não é à toa que o atual governo estuda uma forma de revogar os pisos constitucionais da saúde e da educação, e por isso merecem toda a crítica.  

                Para finalizar: até 2016 convivíamos perfeitamente sem que existisse uma “norma fiscal” que amarrasse a possibilidade de o Estado atuar deficitariamente como indutor do desenvolvimento econômico. Essa é uma invenção recente que contraria a flexibilidade recomendável na condução da política fiscal. A economia é cíclica e se movimenta o tempo inteiro. A política fiscal do Estado deve ter a mesma liberdade para oscilar ao redor dos ciclos econômicos. O antídoto para a dívida pública não é o corte de gastos, é o crescimento econômico, para o qual a atuação do Estado é fundamental. O Brasil precisa urgentemente de uma regra fiscal que, em primeiro lugar, desamarre o Estado para se movimentar em um perímetro liberdade relativamente grande. Por óbvio, não significa que o Estado possa se endividar livremente sem qualquer limite, mas os limites não podem deixar de ser limites para se tornar algemas.

                É por isso que não se pode falar em efetividade dos direitos fundamentais (em especial os  sociais) sem que discutamos a nova racionalidade hegemônica na economia: a austeridade fiscal. O abandono da proposta desenvolvimentista relega os direitos humanos à sua face meramente individualista, sendo certo que sem direitos sociais, sem a erradicação da pobreza e da miséria a luta pelos direitos humanos não passará disso: uma eterna luta sem grandes resultados estruturais. É preciso deslocar o foco das políticas econômicas: as metas fiscais e de inflação, embora possam desempenhar importante papel, devem dar lugar a uma economia para o bem comum que privilegie coisas mais importantes, como o desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável, a eliminação da pobreza e o pleno emprego, pois é aí que começamos a, de fato, concretizar direitos humanos.

REFERÊNCIAS:

1 – BLYTH, MARK. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2020

2- RESENDE, ANDRÉ LARA. Camisa de força ideológica: a crise da macroeconomia. 1ª Ed. Portfolio-Penguin: São Paulo, 2022. Pp. 37-38.

3 – KRUGMAN, PAUL. Um basta à depressão econômica! Propostas para a recuperação plena e real da economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. P. 141.

4 – Idem, p. 68.

5 – BATTINI, NICOLETA; CALLEGARI, GIOVANNI; MELINA, GIOVANNI. Sucessful Austerity in The United States, Europe and Japan. Disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2012/wp12190.pdf. Acesso em: 11.04.2023.

6 – Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-26/gustavo-livio-nao-precisamos-teto-gastos2/. Acesso em: 22.11.2023

Gustavo Livio

Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia. Mestrando com pesquisa em Direito e Economia pela UFRJ. Integrante do movimento Transforma MP.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Coletivo Transforma MP se solidariza com Promotor de Justiça MPPR Jacson Zilio

O Coletivo Transforma MP se solidariza com o Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná e integrante do Coletivo, Jacson Zilio, que está respondendo a procedimento administrativo-disciplinar com pedido de remoção compulsória “a bem do serviço público”, para que seja afastado da atuação na seara criminal.

A Corregedoria MPPR instaurou o procedimento em razão do Promotor seguir precedentes do STJ relativos à inconstitucionalidade de busca pessoal e domiciliar em processos que apuram delitos de tráfico de drogas.

O Coletivo vê com grande preocupação a utilização do Princípio da Unidade institucional como forma de solapar a independência funcional de seus membros que buscam aplicar a Constituição e os direitos fundamentais nela previstos.

O Transforma MP soma-se às diversas vozes de apoio recentemente divulgadas nas redes sociais, confiando que o pedido correicional não será acolhido, preservando-se a independência funcional daqueles que atuam de forma escorreita e devidamente fundamentada, respeitando nossa Carta Magna.

Consciência negra, consciência da história

Por Maria Betânia Silva no GGN

Bom ressaltar que a existência do povo negro no território brasileiro e de seus descendentes ocorreu num contexto  de expansão capitalista.

I – O PASSADO COMO INFLUÊNCIA

Através da Lei nº12.519/2011, 20 de novembro foi instituído como o dia da Consciência Negra, no Brasil.  Dia para ser honrado e celebrado. É data comemorativa para as pessoas negras  desfilarem seus turbantes, suas roupas estampadas e bem coloridas, seus cabelos criativos pelo país afora, muito mais do que o fazem no cotidiano. É um dia que impõe quase um ritual de pertencimento, dando provas de que a cultura é uma forma de resistência do povo negro e convidando todo mundo para acompanhar as procissões ritmadas por tambores. Assim, de um lado, é dia de viver e reviver  intensamente  tradições, criando um ambiente de festa com cantos, com danças e rodas de samba; de outro lado, é dia de muitos encontros para debates, palestras, mesas redondas, lançamento de livros, reflexões, enfim. É uma data repleta de eventos que se espalham pelo Brasil e, na verdade, perpassam quase todo o mês de novembro.

Há também uma outra dimensão da resistência do povo negro e que definiu a escolha do dia 20 de novembro: honrar a memória de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, morto justamente em 20 de novembro de 1695.  Portanto, é um efeméride atravessada pela dor  a ser dissipada  no despertar de luta para construir uma outra sociedade.

É a dor de uma História impiedosa porque, para além de lembrar a morte de Zumbi, lembra quão afetados foram os milhões de africanos submetidos à desumanização pelo colonizador europeu no dentro e fora do território do Brasil. Impossível não lembrar o processo desumanizante que começava nos leilões para a venda das pessoas negras nos mercados em solo africano; mercados como o que existiu na Ilha de Goré, no Senegal, de onde os negros/negras após serem expostos na condição de mercadorias, zarpavam nos chamados “navios negreiros” para o Brasil a fim de serem escravizados.

Digerindo a dor desse passado, 20 de novembro expande uma consciência que nunca pôde ser sequestrada no processo escravagista, bem ao contrário, sempre esteve viva e se reaviva para fincar os pilares de um futuro desejado. O passado do povo negro é lembrança necessária para tornar presente uma construção contínua de emancipação, de afirmação de dignidade e exigência de respeito.

O povo negro, como já dito, foi desterrado da África, trazido para cá, onde literalmente se enterrou, mas nessa terra também renasceu, revivendo a sua ancestralidade e se constituindo como segmento social majoritário na população do Brasil, país que mais recebeu negros africanos em todo o mundo.

Em virtude dessa predominância numérica, o povo negro não perdeu visibilidade, embora tenha perdido em inserção social. Perdeu uma terra e ganhou outra. Dispersado na população brasileira, oscilou entre a resistência organizada e esfacelada, comeu o pão que o diabo amassou e como nunca fugiu da luta, nem foge, ergue a sua bandeira em busca da pátria mãe gentil.

Ser parte do povo negro é exotismo, não é espetáculo, não é só estética, é a força de uma ética forjada na História com o seu desenrolar impactante e com possibilidades de ser esplendorosa em algum momento porque traz uma grande aposta nas formas de organização coletiva segundo a qual tudo é compartilhado em favor do melhor para todos e cada um. Por isso o aforismo Ubuntu: “eu sou porque nós somos”.

Não se pode olvidar que por muito tempo, no Brasil, as lições de História aprendidas nas bancas escolares acerca da escravidão do povo negro, foram, em geral, nutridas pela ênfase em conferir importância ao papel da Princesa Isabel na abolição da escravatura, com a consequente liberdade das pessoas negras, mas excluindo para a ocorrência desse evento, qualquer participação dos negros/ negras na tessitura da ordem social brasileira e na vida política do país. Também evitava- se outrora falar na diáspora africana engendrada pelo tráfico que viabilizou o uso dos africanos como mão-de-obra barata na execução dos planos de conquista e extração de riquezas no território do Brasil/ Pindorama pelo colonizador português, o que, aliás, também com outros colonizadores europeus em certos intervalos de tempo. Exploraram-se os recursos naturais do solo e nenhuma porcentagem dele foi usada para reparação histórica do sofrimento infligido a essa mão-de-obra, não houve compensação. Não houve, por exemplo, uma reforma agrária,  voltada ao contingente dos afrodescendentes para lhes fazer ter a sua terra como território de produção dos seus próprios bens. Apesar de tudo, os afrodescendentes criaram os quilombos, tornando-os não exatamente um lugar de refúgio, mas a reprodução de um território com organização política diferente daquela à qual o colonizador pretendeu submetê-lo, tal como registrado por Beatriz Nascimento[1].

Assim fica claro que dos afrodescendentes no Brasil/Pindorama se ocultara, antes da Lei nº12.519/2011, a História sobre os seus heróis da resistência, bem como, se estrangulara o debate para demonstrar desde sempre como a exploração da mão-de-obra negra moldou a nossa economia. E mais, antes da instituição do dia da Consciência Negra, algo muito importante sucedeu: a promulgação da Lei nº10.639/03 que determinou o ensino transversal da História Afro-Brasileira.

Essa lei significou um grande passo para explorar fatos históricos que revelaram, de um lado, o superdimensionamento da Princesa Isabel como personagem da História do Brasil e, de outro, trouxeram justamente à tona o papel de Zumbi dos Palmares como líder do povo negro, resgatando-lhe o orgulho.

Todo mundo que passou por uma escola, antes de 2003 e logo após 2003, sabe perfeitamente que o dia 13 de maio de 1888 sempre foi uma exaltação feita mais à Princesa por causa da assinatura da Lei Áurea do que uma exaltação ao término da escravidão. 13 de maio de 1888 sempre teve gosto de uma concessão, extraindo do povo negro qualquer conquista.

Tornou-se até palatável na História do Brasil a posição da Princesa Isabel na árvore genealógica dos europeus brancos que conceberam o país como “Império sem soberania” e do qual a maioria da população afrodescendente, batalhadora e fiel ao seu território, fora excluída da esfera de poder e de ganhos sociais. Não foram poucos também os estudos de História sempre compartimentados que deixaram de atentar para as injunções políticas de outros países  ligados à coroa portuguesa ou em conflito com ela e que tiveram reflexos no contexto da abolição da escravatura, no solo brasileiro, tornando invisíveis as lutas e a labuta que o povo negro teve que enfrentar.

Alega-se que Princesa Isabel, fez o que de melhor podia ser feito à sua época. Mas o seu ato também abriu o caminho para enxergar um universo cheio de fantasias sobre o futuro, dourando a pílula do sofrimento interminável da parcela majoritária da população, que foi largada à própria sorte, comprometendo a liberdade obtida.

Passados quase quatro décadas da abolição da escravatura, os negros vagavam no país enquanto políticas de Estado foram implementadas para promover o branqueamento da população, justificadas como doses alvissareiras de futuro. Ao mesmo tempo, medidas repressivas ganhavam espaço para reaprisionar os corpos negros, subtrair-lhes a posição de sujeitos de uma História e inibir as suas manifestações culturais, nunca esquecidas por eles e sempre revividas, reinventadas como forma de resistir, existir e manter íntegra a consciência sobre o seu passado na busca do futuro que desejavam.

Deve-se à Lei nº10.639/03, portanto, o escancaramento do absurdo existente entre a História de um país que foi manipulada pelos vencedores e um Conto de Fadas. São muitas as semelhanças artificialmente forjadas e muito mais diferenças, estas, bem reais. Talvez a mais evidente diferença resida no fato de que a História é interminável enquanto o Conto de Fadas tem um fim e o seu final é sempre feliz, apesar das maldades de alguns dos personagens.

A História, contudo, é processo; o Conto de Fadas é produto!  Na História há um ciclo que oscila entre dramas e superação sem garantia alguma do final feliz; no Conto de Fadas há uma linearidade que termina quando o drama é superado. Em ambos, contudo, há narradores, vilões e heróis que são inseridos numa dualidade viciosa entre alguém que faz o bem e alguém que faz o mal. Essa dualidade parece  ter-se plasmado como indispensável para nos acostumarmos a estudar e/ou a escutar História como se fosse estória. Faltou admitir a dialética!

A História do Brasil foi assim, por muito tempo, embalada numa versão congelante de um Conto de Fadas. Reis e rainhas, príncipes e princesas habitaram o nosso chão por séculos. A tal ponto que a ideia de realeza até hoje se manifesta naturalmente no uso de designativos como Império ou Rei, para atestar uma excelência (que é falsa) em relação a tudo. Há restaurantes especializados no preparo de frutos do mar que é “Rei das lagostas”, passando pela música, através do “Rei do rock” até chegar em estabelecimentos que vendem baterias para veículos automotores, “Império das Baterias”, por exemplo. O existe de mais próximo da realeza, porém, é a concentração da riqueza e a recusa em compartilhá-la em prol do coletivo, do interesse público.

Esse imaginário cultivado na realeza merece atenção porque ele, do ponto de vista antropológico, tem um peso simbólico importante, aparecendo como um dos fatores que deformaram a própria República quanto à diferenciação entre o público e o privado e que retardaram e, ainda, retardam, uma melhoria na vida pública em favor do coletivo. Uma vez proclamada a República no Brasil, com roupagem de golpe de Estado e mesmo que contaminada pela herança monárquica e escravagista, algo não planejado aconteceu: abriu-se a possibilidade de abraçarmos a democracia, para ampliar a participação popular e suavizar a luta de classes. Mas isso foi emergindo de um modo inesperado. Uma das primeiras ideias democráticas a se estender no tecido social brasileiro foi a da romantização quanto às diferenças assentadas na separação racial imposta sob a lógica colonizadora. Olha aí o viés de conto de fadas.

Consagrou-se “o mito da democracia racial”, lamentavelmente, mascarando-se assim a estrutura classista de uma sociedade que foi erguida sobre a exploração da força de trabalho do povo negro, morador da Senzala e submetido à autoridade do seu Senhor, dono da Casa Grande.

II – UM SALTO PARA O FUTURO

Não há dúvida do salto histórico trazido pela promulgação da Lei nº 10.639/03, a despeito dos muitos percalços ainda existentes. Essa lei tem  também o mérito de instituir o ensino transversal da História afro-brasileira[2] na educação básica que é o alicerce da sociedade. A lei institui um resgate de conteúdo da História do Brasil que não precisa ser objeto apenas da disciplina de História, mas, sim, uma abordagem que atravessa qualquer outra disciplina dos currículos escolares. Afinal, a cultura negra e a cultura indígena com todos os saberes ancestrais que delas decorrem se mesclaram aos saberes dos descendentes dos colonizadores. Por apropriação destes últimos, em muitas situações, a roupagem científica cobriu os saberes dos povos dominados como que para deslegitimar a autoria originária deles e assim convertê-los em saberes como que exclusivos do conquistador. Nesse passo, foram eles alçados à categoria de um conhecimento superior, próprio ao modo de ser europeu. Mas, a pesquisa existe para desmontar artifícios sobre a realidade e “dar a César o que é de César”.

Ainda que a Lei nº10.639/03 tenha demorado a ser verdadeiramente compreendida pela maioria dos que têm o dever institucional de implementá-la, ela está aí, sem que possa ser sorrateiramente negligenciada por tantos outros que a conhecem. A instituição do dia 20 de novembro como dia da Consciência Negra, é uma data na qual não se pode usar borracha sobre a História do país, nem dentro nem fora da sala de aula.

A importância dessa lei para uma mudança estrutural da sociedade brasileira (é preciso acreditar que leis possam promover mudanças de dimensão cultural) é indiscutível. Para melhor entender como isso pode se concretizar mais amplamente, a título de exemplo, cabe voltar o olhar para as instituições do país. Isto porque muitas delas foram desenhadas sob a influência de modelos europeus e embora que em alguns aspectos tenham sido adaptadas ao contexto brasileiro, atuam como se estivessem fora do seu lugar.

Nesse sentido, um breve exame da atuação do Ministério Público Brasileiro é bem elucidativa e leva a reivindicar mudanças.

Dentre as inúmeras atribuições constitucionais conferidas ao Ministério Público, cabe-lhe empenho na defesa de direitos fundamentais, dentre eles, o direito à educação. Desse modo, o MP é um órgão legitimado a agir para que a lei da História afro-brasileira seja observada nos estabelecimentos escolares.

Paradoxalmente, porém, a própria instituição ministerial precisa enfrentar e superar problemas de base na sua composição, na sua forma de agir e de pensar porque muitos dos seus membros não incorporaram à sua bagagem intelectual a História afro- brasileira. Majoritariamente formado por pessoas que se declaram brancas, tal como ocorre na Magistratura, muitos membros do MP, instituição integrante do Sistema de Justiça, carecem de consciência sobre o que negritude significa na atualidade e significou na formação do Brasil. Alguns desses membros até sofrem de uma indisposição para adquirir essa consciência.

Nessa perspectiva, ousa-se aqui dizer o dia da “consciência negra”, mesmo que espontânea e naturalmente assumido pelo povo negro do país para marcar a sua resistência à opressão, não implica limitar essa consciência a uma identificação das pessoas de cor preta, como se fosse um atributo exclusivamente delas no espaço de um país que cresceu e se moldou com uma significativa contribuição do povo negro.

É importante ressaltar que a existência do povo negro no território brasileiro e de seus descendentes ocorreu num contexto  de expansão capitalista. E se ainda existe uma herança colonial que é baseada numa ideologia de superioridade étnica do branco europeu, essa superioridade se mostra completamente descabida porque o povo negro revelou os seus saberes e a sua capacidade de resistir ao estado de coisas que possa levá-lo a ser a “carne mais barata do mercado”. O povo negro deu provas de como conviver com o diferente sem descurar da humanidade. A “consciência negra” resulta da compreensão quanto às situações de realidade que sucederam no passado e que ainda se projetam no tempo presente como estruturantes da sociedade, para subalternizar os afrodescendentes e oprimi-los. É visível que, no Brasil, a subalternização e opressão recai sobre a população de cor preta, e é justamente por isso que cabe também ao restante da população, em especial, à população que se declara branca, agora, fazer o esforço para conhecer e agir em respeito aos desideratos da “consciência negra”.

Note-se que na área criminal, por exemplo, o Ministério Público, não é uma referência positiva, uma vez que desconsidera, via de regra, as estruturas sociais resultantes do passado escravocrata do país e, nesse sentido, acaba reatualizando esse passado pela reiterada descrença quanto à vulnerabilidade social das pessoas negras, impondo-lhes o peso de um aparato repressivo regido pelo “racismo de marca”, na expressão de Oracy Nogueira.

Assim, tendo o sistema repressivo ao alcance das mãos, o Ministério Público, que é o titular da ação penal, falha ao utilizar esse sistema ampla e seletivamente para aprisionar inocentes pretos e miseráveis ou penalizar, com rigor, autores pretos de ilícitos de pouca monta enquanto poupa de responsabilidades e punição devida pessoas de cor branca, que cometem ilícitos graves. Em outras palavras, às pessoas identificadas como negras aplica-se o peso das penas previstas no Código Penal e só! Às pessoas identificadas como brancas, dá- se um sopro na pena, preservando as garantias constitucionais e a estrita observância do Código de Processo Penal, mesmo que os delitos os mesmos e  praticados em circunstâncias idênticas por gente negra e/ou gente branca.

Essa forma de agir, sustentada por uma forma de pensar desprovida de consciência sobre a história da negritude, no Brasil, eleva significativamente o encarceramento das pessoas negras. Portanto, uma dose de consciência negra nas cabeças ministeriais faria avançar a equidade de tratamento no interior do sistema de Justiça.

Convém dizer que como são muitos os membros do Ministério Público oriundos de uma classe socialmente abastada e predominantemente, na pele ou no pensamento, identificados ao branco europeu, há uma recusa talvez inconsciente em conhecer detalhes da História do próprio país e compreender como se deu a formação da sociedade brasileira. Ademais, o desprezo, por conseguinte, em perceber que a luta de classes existe e que no Brasil foi forjada no corte racial imposto pelo colonizador e intrínseca ao sistema capitalista e patriarcal, funciona, numa licença filosófica, para os representantes da branquitude, como um “imperativo moral categórico” de ignorância. Tudo tão retorcido e distorcido que tem potencial para fazer Kant se “revirar” no seu túmulo.

Nesse diapasão, não há como negar: o Ministério Público, com honrosas exceções, comete racismo institucional quanto ao acesso das pessoas negras às garantias processuais consagradas na Constituição, tornando, assim, defeituosa a noção de justiça que também atinge as demais instituições do sistema judicial brasileiro.

Daí porque mudar esse padrão de atuação ministerial, demanda mais do que uma reorientação do exercício das atribuições do MP. O Ministério Público, como instituição, precisa fazer mais, precisa reformular também as formas de ingresso na carreira com aplicação da lei de cotas raciais, com o devido aperfeiçoamento e ajustes para criar um perfil institucional mais fiel à realidade e à diversidade étnica que existe no país.

Nesse particular, a necessária guinada no ensino de História no Brasil e, em particular, da História Brasileira inaugurando um olhar mais atento à diversidade cultural na qual a sociedade brasileira foi edificada, deveria se tornar exigível aos candidatos a cargos no MP, quando da realização do concurso. Com essa medida, vislumbra-se a abertura de uma importante janela no processo de compreensão de identidade cultural brasileira, marcando, assim, certa distância em relação ao estudo contemplativo e mimético da História de países estrangeiros. A janela se abre para dentro do país e não para fora.

III – A EMANCIPAÇÃO DOS INDIVÍDUOS SE REFLETE NA SOBERANIA DO PAÍS

O que se tem de certo, em conclusão, é que após a invasão portuguesa ao Brasil/Pindorama a sociedade brasileira que disso descende não expressa apenas os traços daquele que quis escrever a História de uma conquista, essa sociedade encontra muitos paralelos nos modos de vida africana e indígena e, nesses modos, ela se encontra, se desencontra mas se reencontra no papel daqueles que foram tidos como vencidos no processo histórico porque suas vozes foram silenciadas por muito tempo para não contar o que viram, o que viveram e o que precisaram fazer para não serem eliminados.

Em razão de tudo isso é que o Dia da Consciência Negra para além da celebração da resistência  como patrimônio imaterial, fundado na ancestralidade do povo negro que compõe a população brasileira, ganhou com Lei nº 10.639/03 um excelente instrumento de concretude para o resgate e aprendizado real da história do país. Com essa lei, História e Geografia, por exemplo, disciplinas com as quais se lida separadamente com as noções de tempo e espaço, deixam de ser um mero compartimento de saber formal e se fundem num registro existencial do povo brasileiro, permitindo que a  História do Brasil se distancie do “era uma vez” e adquira um sentido menos fantasioso e mais fantasticamente realista.

Vislumbra-se com isso uma mudança de olhares, de práticas institucionais a partir de vivências pedagógicas relacionadas aos contingentes populacionais da base étnica de formação da sociedade brasileira, e que foram expulsos da base intelectual necessária para engendrar o conhecimento que essa sociedade pode ter de si mesma. A despeito de todos os estudos já produzidos no país demonstrarem que negros e indígenas são elementos formadores do povo brasileiro, além dos descendentes europeus, em especial dos portugueses, o fato é que no ensino da História do Brasil, negros e indígenas nunca ocuparam lugar de destaque, diluindo-se na narrativa triunfal do conquistador. Construímos, assim, uma pirâmide social e uma História sobre ela que se pretende tão imutável quanto as pirâmides egípcias. Porém, a nossa pirâmide é feita de gente e gente age em dialética, ninguém é de pedra!

O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP. 


[1]

[2] Vale lembrar da Lei nº11.645/08. sobre o ensino da cultura  indígena  também dá um salto de qualidade no estudo da História do Brasil.

Maria Betânia Silva – Procuradora de Justiça Aposentada – MPPE e membra do Coletivo Transforma – MP

“Devolvam” a PGR ao povo brasileiro

A sociedade , de modo geral, não sabe o que é a Procuradoria-Geral da República e qual o seu papel na realidade constitucional brasileira.

por Márcio Soares Berclaz[2] no GGN

“Embora mais complexo, o ‘sistema político’ que conta com ampla participação aumenta sua legitimidade. Obtém-se um custo mínimo (mesmo econômico dos serviços) quando há um consenso social máximo. O bom governante não teme a participação, mas vigia a governabilidade” Enrique Dussel[3].

A paralisia do atual Presidente da República para nomeação da(o) nova(o) Procurador-Geral da República ganha destaque como notícia. 

Felizmente, alguns editoriais de jornais de circulação nacional tangenciam o problema e alertam sobre a importância desta autoridade ter independência e autonomia. Isso não deixa de ser um avanço. Um bom sinal.

De outro lado, o talentoso Professor Conrado Hübner Mendes, com ônus e risco de quem tem a coragem e ousadia de mexer em vespeiro ordinariamente pouco visitado, nas suas felizes colunas periódicas no Jornal Folha de São Paulo, entre outros relevantes temas da nossa sensível jurisdição constitucional, também segue problematizando e trazendo luz sobre a importância deste cargo de autoridade no ápice de um ainda um tanto quanto cifrado e babélico  sistema justiça.

Este cargo-ofício, composto de “três letrinhas” incapazes semanticamente de enunciar maior conteúdo (PGR) para a sociedade brasileira, que tem Gabinete na instituição com vidros espelhados com duas torres grandes de certo modo afastadas do chão do Cerrado da Capital Federal, concebido pela genial arquitetura do confessadamente comunista Oscar Niemeyer, ainda é um tanto quanto distante da sociedade brasileira. Um território ainda estranhamente desconhecido.

Qualquer pesquisa com mínima seriedade metodológica (uma tarefa pendente, aliás) seria capaz de indicar um óbvio e preocupante diagnóstico: a sociedade brasileira, de modo geral, não sabe o que é a Procuradoria-Geral da República e qual o seu papel na realidade constitucional brasileira. Freireanamente[4], há um desafio pedagógico-popular que precisa ser denunciado, do contrário, não serão possíveis novos anúncios sobre o tema.

Essa simbólica e concentrada representação do Ministério Público brasileiro que, para ficar em dois exemplos, tem privilegiado assento junto aos onze ministros do Supremo Tribunal Federal e que preside o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) como instância de controle do Ministério público, mais do que uma escolha interna de membras e membros do Ministério Público Federal numa eleição informal e corporativa de lista tríplice, precisa envolver a sociedade e a diversidade do povo brasileiro.

Ou será que a instituição que defende o regime democrático (artigo 127 da Constituição) não  precisa ter uma exemplaridade como questão primeira de coerência ético-política? Se realmente pretender defender a sociedade com suficiente aderência, capilaridade e legitimidade, como retoricamente se prega, em especial para uma carreira composta de trabalhadores escolhidos de maneira isonômica e impessoal pela via do concurso público, na forma do artigo 37, II, da Constituição[5], não é minimamente razoável supor que essa mesma clientela (sociedade) deva participar de alguma forma e com algum razoável protagonismo da escolha de quem chefia a instituição?

Por essas e outras razões que definir a chefia desta importante decisão com poder de iniciativa e agenda[6] não pode ser uma escolha corporativa, ainda mais quando o alcance desta corporação, pasme-se, envolve apenas uma parcela dos seus trabalhadores (membros do Ministério Público), sequer abrangendo os seus servidores.

Nesse contexto, a indecisão do Presidente da República bem que poderia derivar não da preocupação de condicionar a escolha do PGR aos seus interesses ou preocupações de momento dado o histórico recente da polêmica e problemática “Operação Lava-Jato”[7] ou mesmo da metafórica escolha de uma importante peça no tabuleiro de xadrez do sistema de justiça como confessado pelo Chefe do Executivo que lhe antecedeu, mas da insatisfação com um modelo constitucional que, como tarefa histórica pendente, precisa urgentemente ser revisado e aprimorado.

Qual é a dificuldade em se aceitar que a sociedade brasileira, com todas as suas forças vivas primeiro enquanto comunidade[8] e sobretudo enquanto povo[9], participe da escolha e do processo de seleção de quem comandará o Ministério Público brasileiro, instituição essencial à justiça responsável pela advocacia em favor da sociedade, seja na titularidade da ação penal recebendo o produto de investigação preliminar ordinariamente feito pelas polícias, seja fiscalizando ações, serviços e políticas públicas para promover e proteger direitos humanos? Do que se tem medo?

Se o Ministério Público brasileiro, por escolha do celebrado constituinte de 1988, possui a singularidade de ser uma instituição com atuação não apenas criminal, mas também de fiscalização de direitos coletivos da sociedade em nome do interesse público, qual a dificuldade em se pensar em um modelo igualmente autêntico e original para a escolha do Procurador-Geral da República?

Será razoável e saudável para uma democracia substancial que o Presidente da República possa escolher a autoridade responsável por fiscalizá-lo ao longo do mandato sem prejuízo da autonomia e independência que são próprias da atividade do Ministério Público no desenho constitucional concebido em 1988?

Alguém acha razoável e compatível com a República comemorada no feriado do último 15 de novembro que fosse o Prefeito Municipal o responsável pela escolha do membro do Ministério Público que o fiscaliza localmente? Claro que não! Por que seria diferente com o Procurador-Geral de Justiça ou Procurador-Geral da República?

A indagação anterior denuncia que a questão precisa ser igualmente discutida no que diz respeito à escolha da Chefia do Ministério Público dos Estados. A lista tríplice[10] votada por membros da classe que segue ao Governador para a escolha de um desses nomes também tem um limite democrático que não pode ser ignorado. Igualmente permite que o fiscalizado escolha seu fiscal e compromete a autonomia e independência próprios do Ministério Público como instituição.

Então, que espécie de demofobia impede que se possa avançar neste tema? Qual a racionalidade dos argumentos para se manter tudo como está?

Partindo do pressuposto que o Ministério Público como defensor do regime democrático (artigo 127, “caput”, da Constituição) deveria ter uma democracia exigente e inclusiva na definição da sua chefia, firme na ideia da Política da Libertação preconizada por um dos maiores filósofos da América Latina (o saudoso e genial Enrique Dussel[11]), de que a potentia, o poder em si, sempre é do povo, diante da ideia de que o poder precisa ser obediencial aos interesses da coletividade e não fetichizado, é de se perguntar quando que a Procuradoria-Geral da República “devolvida” ao povo brasileiro (quando em verdade nunca lhe foi entregue) para a escolha do “Fiscal” maior da República?

Uma coisa é certa: a opção constitucional de escolha do Procurador-Geral da República, em que o Presidente de turno, a partir de um genérico e precário marco constitucional[12], tem a competência privativa de nomear (artigo 84, XIV, da Constituição[13]) alguém que, a seguir, passa pelo crivo do Senado Federal (arguição pública e voto secreto, na forma, na forma do artigo 52, III, “e”, da Constituição), Casa Legislativa que pode, por maioria absoluta e voto secreto, inclusive, interromper o seu mandato (inciso XI do mesmo dispositivo), precisa ser urgentemente aprimorada e discutida com a sociedade brasileira.

A devolução da PGR ao povo brasileiro (como o paradoxo provocativo de ser um cargo de autoridade que em verdade nunca este bem próximo de ser entregue para alguma soberania popular participativo-deliberativa) é um imperativo histórico político-jurídico para (re) legitimação do cargo máximo da instituição que, por escolha constituinte, tal como se depreende da simples leitura do artigo 129 da Constituição, é encarregada da complexa missão de fiscalizar os poderes constituídos da sociedade política.

A escolha da PGR não pode ficar restrita aos limites de uma lista corporativa. Muito menos refém de escolhas não justificadas e sujeitas a pressão da pequena política para uma democracia representativa insuficiente e incompatível com a grandeza e o perfil constitucional do Ministério Público brasileiro na sua árdua e cotidiana missão de fiscalização dos poderes constituídos, Executivo, Legislativo e Judiciário.

Ainda que mesmo e similar avanço também deva ocorrer em relação a escolha dos Ministros do STF e outras instâncias do sistema de justiça na sua estrutura, não se podendo alegar apego a uma tradição de direito comparado para uma realidade constitucional distinta da nossa, na qual o STF representa muito mais do que uma Corte Constitucional e não tem sequer limite no tempo do mandato, é coerente e esperado que a significativa mudança no critério de escolha comece pela Chefia da instituição que, como o Ministério Público, ontologicamente, tem como missão defender a sociedade. Se assim é, não se pode ter a hipocrisia de alijar completamente a mesma sociedade da participação deste processo. Muitos podem ser os modelos. Muitas podem ser as possibilidades. Certeza, uma só: por algum lugar essa mudança precisa começar. Já passou da hora. A historicidade dos mandatos dos Procuradores-Gerais da República com seus avanços e retrocessos está aí, aliás, a espera de um maior escrutínio, melhor e crítico diagnóstico.

Diante dos muitos Ministérios Públicos existentes (Ministério Público da União, subdividido em Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e Ministério Público Militar; Ministério Público dos Estados), o fato é que a instituição ministerial, de indiscutível caráter nacional e de quem se espera um princípio constitucional de alguma unidade, até hoje não soube conduzir o tema da (re) legitimação da escolha da PGR como uma prioridade institucional. Triste cenário.

Da mesma forma, nenhum Presidente da República, ou seja, nunca na história deste país,  teve a sabedoria e grandeza de rediscutir o seu lugar na definição de uma escolha para a qual não está legitimado indiretamente para fazer em nome da sociedade pelo simples fato de ter sido eleito para um mandato, em especial pelo que se espera das próprias funções constitucionais da PGR.

Bom seria que as associações e instâncias de representação político-institucional do Ministério Público, aqui e ali, para além dos debates envolvendo aspectos remuneratórios[14],  estivessem dispostas a exercer pedagogia popular para discutir e problematizar a necessidade de atualização do critério de escolha da Chefia do Ministério Público brasileiro.

Bom seria que o atual Presidente aproveitasse a sua indefinição ou alegada ausência de firmeza e segurança para a escolha do candidato à PGR para propiciar diálogo e discussão sobre o tema com a sociedade brasileira. Por que não, Presidente Lula?

Infelizmente assim não acontece. O movimento de busca dessa consciência crítica não será espontâneo. Ao contrário, precisará ser conquistado pela sociedade com muita luta e mobilização, como foi a conquista de um Ministério Público forte, independente e com multipapéis, como ocorreu com a merecidamente festejada Constituição de 1988.

Esse problema precisa ser debatido e discutido em muitos e diversos espaços. Das faculdades de direito (para o ensino do direito em igual crise)  para muito além do seu restrito alcance, de modo a incluir instâncias representativas a sociedade, entre as quais sindicatos e movimentos sociais populares, para ficar apenas em dois exemplos.

Como dito de início, alguns sinais e alertas para o problema, ainda que tímidos, já podem ser extraídos da realidade.

Algumas entidades, ainda que restritas ao âmbito de profissionais e militantes do campo jurídico, como a Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), tem um histórico valioso de atuação nesse sentido. Vale consultar.

Da mesma forma, é preciso conhecer os movimentos dos Defensores Públicos pela Democracia, a Associação dos Juízes pela Democracia e, sobretudo, algumas propostas do Coletivo Transforma Ministério Público sobre o assunto[15].

Mais do que isso, também há um importante debate em fóruns e sindicatos de trabalhadores do próprio sistema de justiça.

Não por acaso, em 2022, em Porto Alegre, houve um Fórum Social Mundial com temática específica vinculando o tema da Justiça e da Democracia, prova de que a relação desses significantes indica uma necessidade do atual bloco histórico. As discussões e a carta final deste importante evento constitui uma importante fonte e referência.

Todavia, como já dito, além do sempre limitado circuito jurídico, esse problema precisa ser discutido na sociedade ampliada, com especial papel dos meios de comunicação social que, em tempo de desinformação e pós-verdade, precisam ter preocupação e compromisso com a informação adequada da sociedade sobre o sistema que atualmente temos. De nada adianta espetacularizar para elogio ou crítica ações da PGR de plantão, para o bem ou para o mal, sem permitir que haja didática pré-compreensão sobre o lugar desta autoridade de três letrinhas na cena pública brasileira.

A discussão de um tema desta relevância, complexidade e envergadura precisa invadir a cultura e abrir espaço para sua problematização nos mais distintos instrumentos de arte e cultura, incluindo música, na literatura, nas salas de cinema e até mesmo nos palcos do teatro. Trata-se de uma construção permanente e cotidiana, como é a missão de efetivar direitos humanos.

É verdade que a crise democrática na escolha da PGR é apenas um sintoma dentre muitos outros possíveis de um sistema de justiça passível de ser diagnosticado com patológico déficit democrático (basta ver que o único espaço jurídico em que a sociedade de fato decide algo, com erros, acertos e limites, como é próprio do risco inerente à democracia como valor, é no julgamento dos crimes intencionais contra a vida no Tribunal Popular do Júri), na espera de uma Justiça de Libertação. Um sistema de justiça que ainda não está acostumado a passar pelo escrutínio de instrumentos democráticos válidos como audiências públicas, conselhos para exercício de efetivo controle social e até mesmo conferências periódicas, emfim, espaços democráticos para render e prestar contas para a sociedade destinatária das suas ações e medidas, o que ganha ainda mais sentido de urgência quando se trata de uma realidade situada injusta e desigual como a brasileira (o que dificulta o benefício que deveria derivar da própria democracia), à espera de um sistema de justiça preocupado em promover mais libertação e menos dominação, do que não pode escapar a própria crítica ao papel não raro conservador do Direito como, em certa perspectiva, instrumento de manutenção das desigualdades do capital, o que é ainda mais grave na periferia do capitalismo dependente e no Sul do mundo, como é o nosso caso.

Para além do diagnóstico da “ordem vigente”, no caminho do abstrato ao concreto, com olhar nos aspectos formais, materiais e possíveis das muitas mediações necessárias, trata-se de buscar uma nova e transformação crítica. Mais uma lição, inclusive metodológica, do eterno Enrique Dussel[16].

Aprimorar, normativamente, inclusive, com mudança no próprio texto da Constituição, a escolha do Procurador-Geral da República precisa envolver e interessar a sociedade brasileira, sobretudo porque tem relação direta com o fortalecimento do Ministério Público brasileiro como instituição autônoma e independente dos poderes constituídos, não do povo brasileiro. Eleição da Chefia do Ministério Público impacta diretamente a sociedade e com ela precisa ser efetivamente discutida. Sem hipocrisia e com os riscos inerentes a qualquer mudança ou escolha que envolva participação popular e controle social, como há de se esperar que aconteça com qualquer instituição do sistema de justiça, especialmente aquela que tem a vocação e a missão de fazer a defesa da sociedade, como prevê os artigos 127 e 129 da Constituição.

Vamos?

O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

[1] O título deste texto tem inspiração na Tese de Doutorado do talentoso e vocacionado Professor de Direito Constitucional Miguel Gualano de Godoy: “Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais”.

[2] Membro do Ministério Público desde 2004. Professor. Fundador/membro do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Direito, Democracia e Ministério Público. Fundador/membro do Coletivo Transforma MP. Membro do Instituto Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABDJ). Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Email: marcioberclaz@gmail.com.

[3] DUSSEL, Enrique. 20 Teses de Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 162.

[4] Paulo Freire (1921-1997), “patrono da educação brasileira”.

[5] Como ocorre, por óbvio, também por opção constitucional, para a maioria das carreiras públicas.

[6] A expressão “poder de agenda” tem relação com estudos da Professora Maria Teresa Sadek, uma das importantes estudiosas do Ministério Público como instituição que também precisa ser lida.

[7] O que se estabelece a título de hipótese, dado que as razões e as notícias acerca da decisão ainda não tomada, que estabeleceu o maior período de indefinição desde a redemocratização, justificariam um outro texto por si só.

[8] DUSSEL, Enrique. 20 Teses de Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 89: “A comunidade indica a inserção intersubjetiva originária da subjetividade singular de cada cidadão”.

[9] DUSSEL, Enrique. 20 Teses de Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 89/92: “Passemos agora da ‘comunidade política’ ao ‘povo’ (…). Se todos os setores da comunidade política tivessem completado suas demandas, não haveria protesto social nem formação de movimentos populares que lutassem pelo cumprimento insatisfeito de suas reivindicações. É a partir da negatividade das necessidades – de alguma dimensão da vida ou da participação democrática – que a luta pelo reconhecimento se transforma frequentemente em mobilizações reivindicativas (que não esperam a justiça como dom dos capitalistas, mas sim como conquistas dos próprios movimentos). Haverá tantos movimentos quantos reivindicações diferenciais. (…) Como se pode passar de uma reivindicação particular a uma reivindicação hegemônica que possa unificar todos os movimentos sociais de um país em um momento dado? É toda a questão da passagem de particularidades diferenciais a uma universalidade que as englobe. (…) Assim surge a necessidade de ter uma categoria que possa englobar a unidade de todos esses movimentos, classes, setores, etc., em luta política. Ora, ‘’povo’ é uma categoria estritamente política (uma vez que não é propriamente sociológica nem econômica) que aparece como imprescindível, dada a sua ambiguidade – mas sua ambiguidade não é fruto de um equívoco, mas sim de uma inevitável complexidade”.

[10] Observe-se, no ponto, o artigo 128, parágrafo terceiro, da Constituição: “Os Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal e Territórios formarão uma lista tríplice dentre integrantes da carreira, na forma da lei respectiva, para escolha do seu Procurador-Geral, que será nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, para mandato de dois anos, permitida uma recondução”.

[11] Autor lamentavelmente falecido no último dia 05 de novembro aos 88 anos na Cidade do México. Fundador e o principal autor da Filosofia da Libertação como corrente filosófica que, na ética, na política, na economia e até mesmo na estética, deixou um legado filosófico extraordinário que permite pensar criticamente os principais problemas realidade latino-americana na perspectiva da Transmodernidade.

[12] Lembrando que o artigo 128, parágrafo primeiro, estabelece que “O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação do seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução”.

[13] XIV – nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da República, o presidente e os diretores do banco central e outros servidores, quando determinado em lei.

[14] Por mais que esses sejam compreensíveis e próprios de qualquer carreira pública a até mesmo um desejo da maioria da fração da classe.

[15] Saiba mais em: www.transformamp.com.

[16] Consulte-se, a propósito, “20 teses de política” (São Paulo: Expressão Popular, 2007).

Esporte e direito à identidade de gênero: as iniciativas legislativas homotransfóbicas

Por Roger Raupp Rios e Lucas Costa Almeida Dias

A proibição de discriminação por identidade de gênero, direito humano e fundamental afirmado tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, é cada vez mais desafiada pela crescente ofensiva antidireitos LGBTQIA+.

Exemplos disso se espalham por todo o país, como demonstram propostas legislativas (em nível federal, o Projeto de Lei nº 2.200/2019; em nível estadual, o Projeto de Lei catarinense n. 16/2023) e inclusive legislação já aprovada em Boa Vista (RR). Tal lei estabelece o sexo biológico como único critério para definição de gênero em competições esportivas oficiais municipais [1].

A lei municipal ainda prevê a desclassificação e/ou multa das entidades desportivas que descumprirem a lei, a anulação de prêmio ou título de equipe que possua atleta transgênero dentre seus integrantes e estipula o banimento do esporte de atletas trans que se inscrevam em competição e omitam sua condição de pessoa trans.

Tais medidas, manifestações de discriminação transfóbica, são inconstitucionais, revelando-se ainda atécnicas e desatualizadas.

Leis municipais de tal teor, de início, padecem de nulidade formal, por extrapolarem a competência legislativa sobre assuntos de interesse local e não suplementarem legislação federal e estadual (artigo 30, I e II, CF); isso porque o desporto está inserido dentre as matérias de competência legislativa concorrente entre União, estados e o Distrito Federal, de modo que cabe à União a edição de normas gerais sobre a matéria, e aos Estados e ao Distrito Federal a edição de normas suplementares, sem prejuízo da possibilidade de legislarem de forma plena sobre matérias em que inexista legislação federal que trate do assunto (artigo 24, IX, parágrafos 1º, 2º e 3º, CF).

Não podem os municípios desconsiderarem a existência da Lei n. 9.615/1998 (Lei Pelé), que institui normas gerais sobre o desporto, e da Lei nº 14.597/2023, que institui a Lei Geral do Esporte. Na Lei Pelé, o desporto é visto como direito individual e tem como um de seus princípios base o da democratização, garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação (artigo 2º, III). Nessa mesma linha, a Lei Geral do Esporte dispõe que a democratização, a inclusão, a liberdade e a participação são princípios fundamentais do esporte (artigo 2º, II, X, XII e XIII), e estipula que todos(as) possuem direito à prática esportiva em suas múltiplas e variadas manifestações (artigo 3º).

A inconstitucionalidade também é material. Acaso fossem válidas, tais iniciativas seriam uma exclusão de pessoas trans do exercício do direito fundamental de praticar esportes, sendo que algumas chegam a postular a anulação de prêmios e títulos já conquistados, num efeito estigmatizantes que se pretende até retroativo!

A jurisprudência do STF tem sido firme na afirmação dos direitos LGBTQIA+: declarou a inconstitucionalidade de leis municipais que proibiam a divulgação de material com informação de “ideologia de gênero” em escolas municipais (ADPFs 457, 460 e 526); decidiu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia e determinou que a conduta está albergada no crime de racismo (Lei 7.716/1989) até que seja editada lei sobre a matéria (ADO 26); reconheceu às pessoas trans, independentemente de cirurgia ou da realização de tratamentos hormonais, (1) o direito à alteração de prenome e (2) sexo diretamente no registro civil (ADI 4.275); autorizou a doação de sangue por homens gays (ADI 5.543).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, decidiu que a expressão “outra condição social” do artigo 1.1 da CADH, que trata sobre o direito ao gozo de direitos sem discriminação, abarca a orientação sexual e a identidade de gênero (caso Atala Riffo e Filhas vs. Chile) e determinou que absolutamente todos os direitos civis sejam reconhecidos à comunidade LGBTQIA+ (Opinião Consultiva 24/2017).

No plano internacional, atletas trans podem disputar as Olimpíadas desde 2004. No entanto, as regras do Comitê Olímpico Internacional (COI) inicialmente exigiam a cirurgia de redesignação genital. Essa obrigatoriedade deixou de existir em 2015, quando a entidade revisou suas diretrizes [2] e deixou de impor a cirurgia por “ser inconsistente com novas legislações e noções de direitos humanos”. Passou-se a determinar, então, que as atletas trans permanecessem com os níveis de testosterona dentro do limite de 10 nanomol por litro de sangue nos 12 meses anteriores à competição. O limite também precisaria ser obedecido durante todo o período de competições, sob pena de suspensão.

Em novembro de 2021, uma nova diretriz para a regulamentação dos atletas transgêneros foi divulgada pelo Comitê Olímpico Internacional baseada em dez princípios norteadores. Entre eles está a não presunção de que esses atletas teriam vantagens competitivas até que evidências científicas robustas provem o contrário. Na ocasião, excluiu-se o critério previsto na Declaração de Consenso de 2015 — pautado apenas na quantidade de testosterona no sangue e unificado para todos os esportes. Agora caberá às federações internacionais o dever de desenvolver seus próprios requisitos de elegibilidade e participação de atletas transgêneros e intersexuais.

O documento denominado Guia do COI sobre Justiça, Inclusão e Não Discriminação com Base na Identidade de Gênero e Variações de Sexo orienta as entidades esportivas sobre como criar e implementar critérios de elegibilidade para competições masculinas e femininas de alto nível, com ênfase na inclusão de atletas transgêneros e atletas com variações de sexo e substitui as declarações anteriores sobre o assunto [3].

O direito à igualdade, portanto, consiste na exigência de um tratamento sem discriminação odiosa, que assegure a fruição adequada de uma vida digna. Trata-se de uma igualdade que busque o reconhecimento de identidades discriminação, subjugadas injustamente por setores hegemônicos. Implica também no dever de promover a igualdade, o que traz como consequência um dever constitucional de criar condições para igual participação na vida em sociedade.

No esporte, como em outros âmbitos da vida em sociedade, a identidade de gênero e a orientação sexual tem importância fundamental em muitos aspectos de suas vidas. A população LGBTQIA+ continua a experimentar estigmas danosos e enfrenta vários encargos pessoais e sociais relacionados à saúde física e mental, altas taxas de suicídio, exclusões familiares, discriminação, falta de moradia e emprego, marginalização e barreiras ao acesso a serviços públicos que demandam apoio governamental direcionado. Há 14 anos consecutivos, o Brasil é o país que mais mata travestis, mulheres e homens transexuais no mundo, de acordo com o relatório desenvolvido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). De 80 países reunidos no projeto internacional Trans Murder Monitoring, quase 40% (1.741 de 4.639) das mortes registradas entre 2008 e 2022 ocorreram no Brasil. Além disso, houve 14 casos de suicídio, o que representa uma média de uma morte de pessoa trans a cada 34 horas, e dá a essa população uma expectativa de vida de 35 anos (enquanto da população geral é de 74,9 anos) [4].

Iniciativas legislativas que atentam contra direitos humanos e fundamentais de pessoas LGBTQIA+ na vida social em geral, e em particular restringem sua participação na esfera esportiva, acionando discriminação baseada no gênero, só reforçam esse quadro de violência e injustiça.


[1] https://www.folhabv.com.br/esporte/boa-vista-passa-a-proibir-trans-em-categoria-esportiva-oposta-ao-sexo-de-nascimento/

[2] Disponível em: <https://stillmed.olympic.org/Documents/Commissions_PDFfiles/Medical_commission/2015-11_ioc_consensus_meeting_on_sex_reassignment_and_hyperandrogenism-en.pdf>.

[3] Disponível em: <https://olympics.com/ioc/news/ioc-releases-framework-on-fairness-inclusion-and-non-discrimination-on-the-basis-of-gender-identity-and-sex-variations>.

[4] Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf

Roger Raupp Rios é desembargador federal no TRF-4, mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor do mestrado e doutorado da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura (Enfam).

Lucas Costa Almeida Dias é procurador da República no Acre e coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF).

STF, Banco Central, super ricos: a história coletiva é implacável e dramática

Por Maria Betânia Silva no GGN.

I – UM FATO QUALQUER !?
No dia 26 de outubro do ano corrente, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 860631, que data de 2015 e foi interposto por um cidadão contra a Caixa Econômica Federal (CEF). A Caixa, que lhe tinha financiado, sob a cláusula de alienação fiduciária, a aquisição de um bem imóvel, pretendia aplicar a Lei nº9.514/97 para retomar o bem por causa do atraso no pagamento das prestações. O caso chegou no STF em 02 de janeiro de 2015 e foi distribuído ao gabinete do Ministro Luiz Fux, para a relatoria.


O Recurso Extraordinário no STF, desde então, em uma brevíssima síntese:


a) foi remetido à Procuradoria Geral da República, em 2017, que se manifestou favoravelmente ao mutuário;
b) teve reconhecimento de que a causa continha elementos para ser julgada com a cláusula de Repercussão Geral (art.322 do Regimento Interno do STF n.58/2022), em 2018 e;


c) ainda, contou com decisões do relator, admitindo no dia 14 de agosto de 2018, a Associação Brasileira de Mutuários de Habitação para atuar no processo e, depois, em 02 de agosto 2019, o Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.
até que em 17 de dezembro de 2020, o Recurso foi incluído em pauta de julgamento para o 24 de março de 2021.


O julgamento, porém, não ocorreu nessa data.
Em 24 de fevereiro de 2021, coincidentemente, dia previsto para o julgamento do Recurso Extraordinário no STF sobre a Lei nº9.514/97 o relator, Ministro Luiz Fux, admitiu o Banco Central e a FEBRABAN como amicus curiae.


Após isso, o recurso foi de novo em pauta para julgamento no dia 01.06.2022 que somente teve seu início em 25 de outubro de 2023, com decisão favorável à CEF e extensão dessa decisão para todos os casos que envolvem a compra de imóveis sob financiamento, mediante a cláusula de alienação fiduciária. Isso significa, na prática, que os bancos financiadores de compra de bem imóvel, amparados na Lei nº9.514/97, podem retomá-lo do comprador que esteja em débito, através de um procedimento feito em cartório, não precisando ajuizar qualquer ação no Judiciário, desde que o devedor seja devidamente notificado sobre o procedimento.


Assim, se o devedor verificar irregularidades e violação ao seu direito de defesa, poderá, ele, ajuizar uma ação no Poder Judiciário contra o banco. Este foi, aliás, um dos argumentos suscitados pelo Ministro relator que convalidou a Lei nº9.514/97, considerando-a em harmonia com a Constituição que consagra a busca da tutela jurisdicional quando houver lesão ao direitos. Além disso, o próprio Presidente do STF, Ministro Luís Roberto Barroso, em entrevista voltada a esclarecer o referido julgamento, salientou, ainda, que a decisão pode ter por efeito o barateamento do crédito imobiliário.

I.1. OUTRO FATO…
Por coincidência também, no dia 24 de fevereiro 2021, durante o governo anterior, foi sancionada a Lei Complementar nº179 conferindo autonomia ao Banco Central. Dando cumprimento a essa lei, no dia 20 de março do mesmo ano, foram nomeados, como Presidente do Banco Central (BACEN), o senhor Roberto Campos Neto e dois diretores, o de Administração e o de Regulação, com mandatos até dezembro de 2024. Eventual demissão do Presidente do BC, segundo essa Lei Complementar, deve obter o aval do Senado Federal e, de acordo com o art.6º dela:


“O Banco Central do Brasil é autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira, pela investidura a termo de seus dirigentes e pela estabilidade durante seus mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei Complementar ou de leis específicas destinadas à sua implementação”.


Enfatize-se que embora nomeado por um Presidente da República, o Presidente do Banco Central não se submete a nenhum Ministério e não está em posição de subordinação hierárquica. Assim, cabe esse banco, através do seu presidente, conferir solidez ao Sistema Financeiro, autorizando e fiscalizando as instituições financeiras e impondo-lhes normas reguladoras, como definição da taxa de juros baseados na Selic, para que elas operem no mercado de crédito. Por isso, o BC é considerado o ‘banco dos bancos”.
Logo no início do ano de 2023, a atuação do Presidente do Banco Central foi alvo de duras críticas por parte do governo do Presidente Lula. O governo se mostrou indócil com a manutenção da taxa juros no patamar de 13,75%, que vem sendo, contudo, reduzida pelo BC a conta gotas, depois de muita pressão. Mesmo assim, agora em novembro, ela, ainda, apresenta o percentual de 12,25%.


Tudo isso significa que o desempenho do Banco Central tem potencial para interferir no mercado imobiliário e nos programas governamentais, por exemplo, que dependem de crédito oferecidos pelas instituições financeiras públicas e privadas, afinal, sobre as prestações incidem os juros e o BACEN fixa-lhes num percentual de referência.


Dentre as instituições financeiras que lidam com financiamento para compra de bem imóvel, destaque-se a Caixa Econômica Federal, que em 2021 cobria 67% do mercado imobiliário do país, segundo matéria publicada no G1 (https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/especial-publicitario/roca-imoveis/noticia/2023/08/14/financiamento-imobiliario-da-caixa-o-que-mudou-em-2023.ghtml).
Também, nessa matéria, fica claro que em julho de 2023 a CEF efetuou mudanças no programa de financiamento que envolve o Programa do Governo Federal “Minha Casa, Minha Vida”, reduzindo os juros para facilitar o acesso ao crédito imobiliário. Por pressão do governo, após árduas negociações, em agosto de 2023 se deu o primeiro corte da taxa Selic definida pelo Banco Central.

I.2. MAIS UM FATO…
Com o propósito de regulamentar o art.153 da Constituição Federal de 1988 foi aprovado na Câmara de Deputados, no dia 25 de outubro do ano corrente, coincidentemente, data na qual se iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário sobre a Lei nº9.514/97, o projeto de lei que prevê o pagamento do Imposto sobre Grandes Fortunas e offshores. (IGF)


Segundo o site do Congresso em Foco (https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congresso-nacional/tributacao-das-offshores-veja-como-cada-deputado-votou/) a votação na base do governo, contou com o partido União Brasil que contabilizou 14 votos contrários, o PP que contabilizou 10, o MDB, cinco; o PSD, dois e o Republicanos, quatro.


Obviamente, o governo contou com muitos mais votos favoráveis vindos desses partidos que compõem a sua base no Congresso assim como aqueles da bancada do PT. Na oposição, o PL forneceu 12 votos favoráveis, havendo a maioria dos membros desse partido votado desfavoravelmente ao IGF. O projeto seguirá, então, para o Senado Federal.


Interessante registrar que matéria publicada em 29.08.2023, no site Brasil de Fato, (https://www.brasildefato.com.br/2023/08/29/taxacao-de-super-ricos-afeta-0-001-dos-brasileiros-e-financiaria-cerca-de-30-do-minha-casa-minha-vida) aponta que o IGF afeta 0,001% dos brasileiros e financiaria 30% do Minha Casa, Minha Vida.


I.3. MAIS UM OUTRO FATO
Ainda, segundo os veículos de comunicação que cobriram a votação na Câmara de Deputados do Projeto relativo ao IGF, a aprovação contou com o apoio do Presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, que poucas horas antes, conseguira indicar para Presidência da CEF o nome de Carlos Antônio Vieira em lugar de Rita Serrano, funcionária de carreira da CEF, que foi exonerada do cargo.


Esse fato gerou na mídia alternativa especulações sobre se o IGF constituiu uma verdadeira vitória para o governo e forças progressistas, na perspectiva de reduzir os benefícios históricos dos que possuem grandes fortunas no país ou, se esse projeto configurou uma grande e grave armadilha.


No canal YouTube do Instituto Conhecimento Liberta, conforme vídeo veiculado no dia 27.10, o seu criador, Eduardo Moreira, baseado em nota dada pela assessoria de imprensa do governo, ventila a ocorrência de uma farsa.


Isto porque, segundo ele, a alegada taxação dos super ricos, na verdade, promove uma redução da alíquota e não a elevação do imposto, que já incide sobre os chamados Fundos Exclusivos. Nesse diapasão, Eduardo Moreira explicou que Fundos Exclusivos é um tipo de investimento comum entre os super ricos, os quais, são submetidos ao pagamento de 15% sobre os rendimentos obtidos com os seus investimentos apenas quando do resgate do dinheiro investido e que, com o referido projeto, passarão a pagar, por antecipação, entre 6 e 8% caso ocorra a aprovação no Senado. Ou seja, eles terão redução da alíquota caso antecipem o resgate, tratamento que difere dos Fundos de Investimentos para os “pobres mortais”, porque estes pagam obrigatoriamente de seis em seis meses os 15% de imposto sobre o lucro do dinheiro investido.


Segundo Eduardo Moreira, essa redução trazida pelo projeto IGF estaria atrelada ao arcabouço fiscal promovido pelo Ministério da Fazenda, que, sob pressão desses super ricos, foi obrigado a negociar com eles. Assim, para ter de imediato o dinheiro em caixa necessário para zerar o déficit prometido no arcabouço fiscal, o Ministério foi enredado na ideia de reduzir o imposto do Fundo Exclusivo de investimento, em caso de pagamento, por antecipação. O ponto positivo nessa negociação, ressaltou, foi a taxação sobre o dinheiro dos super ricos nas offshores, mesmo assim numa alíquota menor do que aquela querida pelo governo.


Paralelamente, Eduardo Moreira chama a atenção para matéria publicada na Carta Capital que revela lucros no percentual de 144% nos Fundos de Investimentos realizado pelo Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de 2019 até agora. Com o projeto IGF no horizonte, ele pagará o imposto, se quiser antecipar o pagamento, aplicando-se-lhe a alíquota de 8% e não mais de 15%.

II. TUDO É POLÍTICA
Talvez, numa leitura apressada, os fatos acima narrados possam até parecer desconectados, mas na realidade de vida do Brasil atual fornecem indícios do quão implacável é a nossa História. Vejamos.
Sob as lentes macroscópicas da Economia e numa perspectiva meramente formal, o STF fez a interpretação da Lei nº9.514/97, convalidando-a. Sua aplicação, no entanto, poderia, em uma situação concreta, também levar em conta argumentos relacionados a juros altos, passando pelas distorções históricas de distribuição de renda no país que desembocam num debate sobre o sistema tributário em vigor e nos mecanismos que movimentam o sistema financeiro em favor dos bancos. Enfim, dados de realidade da economia brasileira que, a rigor, dificultam a vida das pessoas de classe média dependentes de financiamento para aquisição da casa própria.


Em vista de tudo isso, apressar ou lenfiticar o motor das desigualdades sociais acaba também sendo uma tarefa que o Judiciário pode cumprir, porque resvala na ideia de fazer justiça. Logicamente, antes de tudo, a escolha de argumentos que fundamentam uma decisão judicial demanda o exame de muitas variáveis e muita sensibilidade social para não abraçar formalismos exagerados que naturalizam a injustiça. Em alguns casos para além do que se coloca no horizonte do Judiciário, o esforço de reduzir desigualdades envolve outras esferas de poder e inúmeras negociações que se apresentam quase como um cabo de guerra de avanços e recuos na mesa da Política.


A despeito de ser a Política, por excelência, a arte da negociação, isso somente é possível quando as partes envolvidas nessa negociação são verdadeiramente democráticas. Ou seja, agem com transparência, com honestidade e a favor do bem-estar da maioria da coletividade, sem excluir minorias.
Dito isto, indo aos fatos narrados nos itens anteriores e aos elos que existem entre eles, atente-se que o precedente de Repercussão Geral firmado pelo STF no RE 860631, é lamentável.


Se um lado, do ponto de vista das garantias formais relativas ao direito de defesa do mutuário, a Lei nº9,514/97, convalidada pelo STF, está sintonizada com a Constituição Federal; de outro, a decisão desse Tribunal tem o condão de produzir efeitos muito desfavoráveis para quem pretendia realizar o sonho da casa própria sem recorrer, por exemplo, ao Programa Nacional de Habitação como o “Minha Casa, Minha Vida” porque em função do seu perfil o financiamento em banco privado para comprar o seu imóvel lhe era possível. Nessa perspectiva, a decisão frustra a concretização de vários princípios constitucionais, um deles: o direito à moradia.


A permissão de que os bancos financiadores de compra de imóvel por particulares, sob a cláusula de alienação fiduciária, possam retomar o imóvel nos termos da Lei nº 9.514/97, em caso de atraso de três prestações, sem acionar o Poder Judiciário, torna o procedimento célere para o banco e deixa no olho da rua o devedor, que vai precisar se virar para ter um teto, mesmo que o imóvel retomado seja o único para abrigar a sua família. Essa hipótese se concretizada, aliás, contraria um precedente judicial que se revelava sólido no mundo jurídico, qual seja: o de proteger o bem de família para amparar os filhos. Não parece crível que o banco vá esperar e se sensibilizar com explicações do mutuário sobre se o atraso nas prestações se deveu à perda de emprego ou a uma doença grave no seio da família ou a outra razão qualquer impeditiva para para arcar com sua obrigação. Ele, o mutuário, se se sentir prejudicado recorrerá ao Judiciário em desvantagem, travando uma luta de formiga contra um Elefante. Não é por acaso que, no Brasil, se tem uma Associação de Defesa dos Mutuários!


E isso tudo não passa ao largo do fato de se ter no Banco Central, que é um dos segmentos do Sistema Financeiro Nacional, um Presidente soberano porque elevado ao patamar de autoridade máxima na definição da taxa básica de juros da economia do país, além de muitas outras tarefas de relevância para a estabilidade monetária.


O Banco Central (BACEN) tem papel salutar no desenho desse sistema e define a taxa de juros aplicável aos negócios das instituições financeiras; o seu Presidente, aliás, exerce funções no Conselho Monetário Nacional com direito a voto e outras tantas funções semelhantes àquelas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ligada ao Ministério da Fazenda. Também, como um outro segmento do Sistema Financeiro Nacional, a CVM, que se volta à fiscalização dos fundos de investimento, bolsa de valores, e não está submetida a uma relação hierárquica ao Ministério da Fazenda. Já o BACEN fiscaliza os bancos.
Assim, BACEN e CVM, atuam de forma coordenada por força de convênio sob o olhar do Conselho Monetário Nacional que orienta a aplicação dos recursos das instituições financeiras, dentre outras tantas tarefas.


Em certa medida é compreensível porque o governo tinha tanto interesse em regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas que implica desagradar os super ricos quanto aos seus investimentos. Os Fundos de Investimento a um só tempo promovem o cruzamento entre questões financeiras relacionadas aos rendimentos dos valores nele aplicados e questões tributárias relacionadas ao montante de imposto que se paga sobre a valorização do capital “imobilizado” nos Fundos. Na prática, a sistemática de cobrança de imposto sobre o capital dos super ricos, contribuiria para elevar a arrecadação, aumentando, portanto, o caixa do governo que depende disso para a realização dos seus próprios investimentos atrelados aos seus programas de melhoria social.


É preciso considerar que os super ricos constituem uma parcela ínfima da sociedade brasileira acostumada a viver à beira da piscina enquanto o seu investimento nos Fundos Exclusivos bem abrigados pelos bancos, cresce como onda de tsunami sobre as casas de uma comunidade de pescadores, de sorte que a mudança trazida pelo projeto de lei de IGF no limite talvez constituísse a esperança de poder direcionar recursos correspondentes aos 30% de financiamento do Programa Minha Casa, Minha Vida, como prospectado na matéria do Brasil de Fato (https://www.brasildefato.com.br/2023/08/29/taxacao-de-super-ricos-afeta-0-001-dos-brasileiros-e-financiaria-cerca-de-30-do-minha-casa-minha-vida).
A explicação trazida por Eduardo Moreira no canal YouTube do Instituto Conhecimento Liberta acerca da redução da alíquota sobre IGF pareceu esclarecedora mas foi desalentadora.


Numa perspectiva sistêmica, sabe-se que a economia se rege por muitas variáveis, e em relação ao setor imobiliário, por exemplo, o desalento se agiganta diante do possível efeito colateral da decisão do STF no já examinado Recurso Extraordinário que convalidou a Lei nº9,.514/97.


Pode-se perfeitamente especular que os mutuários com prestações atrasadas de financiamento de seus imóveis financiados por bancos privados, tentem, eventualmente, na hora do sufoco, tentar migrar para o Programa Minha Casa, Minha Vida, da CEF cuja Presidência está nas mãos de um afilhado político de Arthur Lira, o qual fez as tratativas para aprovação do Projeto de Lei de IGF, na Câmara. Na hipótese de que algo assim aconteça, o governo talvez venha a ser obrigado a redesenhar o programa Minha Casa, Minha Vida ampliando-o e, para tanto, precisará também ter o recurso necessário para tal investimento. Nesse sentido, pode se ver diante de uma encruzilhada: ou reduz o subsídio do financiamento que oferece para aquisição de moradias ou terá que duelar ainda mais para reduzir juros. Portanto, não parece tão certa a afirmação de que a decisão do STF ao validar a Lei nº9.514/97 possa baratear o crédito para aquisição da casa própria, como dito pelo Ministro Barroso.


Entre os três fatos destacados acima neste texto, repita-se: decisão do STF, Presidência do BACEN (relação deste com a CVM) e o Projeto de IGF os elos expostos se desenvolvem em torno de instituições financeiras, investimentos financeiros e fixação de juros, de um lado e; do outro, sonho de aquisição de casa própria sob financiamento de instituição bancária para realizá-lo que concorre com o interesse de uma oligarquia beneficiária do sistema financeiro e das distorções do sistema tributário que lhe permite manejar o fluxo do dinheiro no país para concentrar riqueza sob várias formas.


Fácil perceber que quando se tratou de reduzir juros, os quais no início do ano estavam na casa de 13,75%, esse percentual o governo teve dificuldades, por mais que afirmasse que esses juros atuavam como bloqueador do desenvolvimento do país por encarecer o crédito e beneficiar quem atua no Sistema Financeiro, sendo um grande estímulo à especulação. Não se pode esquecer também que o Banco Central levou oito meses para fixar esses juros no patamar de 12,25% e que o Congresso, por seu turno, para votar pela aprovação de um projeto anunciado pela mídia corporativa como Imposto sobre Grande Fortunas, o fez depois que o governo precisou negociar a votação em troca da Presidência da CEF concedida a um afilhado político do deputado Arthur Lira. Não foi por acaso que a CEF foi disputada como a “menina dos olhos” pelo Presidente Câmara, dentre os interesses ainda não bem claros para essa disputa, objetivamente a CEF acolhe boa parte do Programa de Financiamento de Habitação Nacional cujo investimento vem dos cofres do governo para facilitar que o mutuário não seja asfixiado pelo pagamento de juros, os quais são definidos pelo Banco Central presidido por um super rico.
Desolador esse cenário!


A despeito da Política ser a arte da negociação, isso não se confunde com chantagem, tampouco com a montagem de armadilhas que comprometa a boa intenção de uma partes, como parece ter ocorrido.
A História do Brasil nesse aspecto, infelizmente, é profícua. Fazer Política nesse país demanda mais do que jogo de cintura. O uso do Direito para concretizar o princípio da dignidade humana, buscar a redução de danos sociais, proteger a moradia como uma função social da propriedade e até corrigir as distorções do sistema tributário que penaliza os menos endinheirados, por mais razoável que seja, não se convalida como instrumento para reverter de forma eficaz a pirâmide social. O Direito Tributário, por seu turno, teoricamente, um ramo do Direito com potencial revolucionário porque através dele se poderia priorizar a cobrança de imposto para promover uma boa arrecadação para o caixa do governo, deixando-o com folga para realizar investimentos em programas sociais, lamentavelmente, é submetido ao Direito Financeiro cujos melhores especialistas são aqueles que vivem dos lucros do dinheiro que acumularam ao longo da vida. O Capital é isso aí e a luta de classes também, como uma consequência lógica!


Fica, então, o alerta para que, aprumando os nossos quadris, nós brasileiros, possamos ter o jogo de cintura nessa História de uma casta só, uma casta apreciadora de Miami e não do país onde nasceu. Uma casta que se apraz com uma História ao longo da qual insiste em devorar o futuro do povo brasileiro e detonar as boas intenções de um governo cuidadoso.
É preciso se preparar para resistir a essas manobras que nos tiram o chão, com “tudo demorando em ser tão ruim”, como diz a canção de Caetano.


Para tanto e também relaxar com ritmo não paremos de cantar a esperança que se ergue nos versos seguintes dessa mesma canção: “…o samba ainda vai nascer/ o samba ainda não chegou/ o samba não vai morrer/Veja, o dia ainda não raiou/o samba é pai do prazer/o samba é filho da dor/o grande poder transformador”.


Ah! Para concluir, tomara que tudo isso nos transforme num povo organizadamente aguerrido, capaz de melhorar as nossas malocas cantando o deboche expresso na composição de Haroldo Barbosa e imortalizado na voz de João Gilberto “…madame diz que a raça não melhora, que a vida piora por causa do samba / que samba, coitado, devia acabar…”. Se “madame não gosta que ninguém sambe” “saiba que o samba vai nascer”, (re) nascer, se renovar e inovar!


Assim, entre a madame da letra do samba, a Faria Lima, o BACEN e o Centrão há algo em comum: um parafuso a menos!

O artigo não manifesta representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada do MPPE e integrante do Coletivo Transforma MP.

O STF não está em conflito com a Justiça do Trabalho: está em luta contra os direitos humanos

Por Rodrigo de Lacerda Carelli no JOTA

Se o STF não reverter sua jabuticaba, o Estado Brasileiro deve responsabilizado perante as cortes internacionais de direitos humanos pelos atos da Suprema Corte.

A imprensa noticiou recentemente suposto conflito entre o Supremo Tribunal Federal -STF e a Justiça do Trabalho. Falas agressivas do ministro Gilmar Mendes foram divulgadas, acusando as cortes trabalhistas de não respeitarem as escolhas políticas feitas pelo Congresso Nacional e pelo STF. A Justiça do Trabalho foi acusada pelo ministro de “sobrecarregar o STF” com reclamações constitucionais, “por caprichos da Justiça do Trabalho, que não devem obediência a nada: à Constituição, aos Poderes ou o próprio Poder Judiciário”. Se fica claro que o ministro resume o Poder Judiciário à Suprema Corte, não menos grave é ouvir notícia de que o Ministro Barroso busca uma solução para a questão, seja por meio de “pinçar um recurso extraordinário… para uniformizar a jurisprudência”, ou criando um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas ou, o que é a solução mais insultuosa, encontrando uma forma de que o Conselho Nacional de Justiça faça com que os tribunais trabalhistas sigam as decisões do STF.


Deve ser deixado claro, logo de início, que quem criou o problema foi o próprio STF. O Tema 725 teve redação final muito mais ampla do que estava sendo discutido na Corte, que era os limites dados à terceirização, em especial a limitação do fenômeno em relação à atividade-fim. O texto do tema diz: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. A parte sublinhada não estava em discussão, não havia nada em relação a isso nos precedentes que deram origem ao tema. A partir daí, a Corte passou a, de forma surpreendente, decidir de forma monocrática Reclamações Correicionais em face dos órgãos de todas as instâncias da Justiça do Trabalho para muito além do texto vinculante, vindo a cassar decisões que reconheciam o vínculo empregatício pela utilização fraudulenta de uma ampla gama de contratos civis para mascarar o vínculo de emprego, desde falsos representantes comerciais autônomos a entregadores por plataforma, passando por médicos em hospitais e outros profissionais. As empresas descobriram o caminho de pular todas as instâncias trabalhistas e estão realizando uma enxurrada de reclamações ao Supremo Tribunal Federal. Esse é o primeiro ponto: o STF criou o problema pela extensão do tema, sem uma discussão profunda sobre as suas consequências, e por aceitar a via de reclamações correicionais como um super recurso, um super trunfo a ser sacado da manga para pular as cortes trabalhistas, para muito além do que está decidido no tema vinculante. Com a carta mágica da Reclamação não somente instâncias são puladas, mas se escapa de toda a análise fática dos casos. É mais que um recurso: é uma bênção quase divina, um zap do truco a ser lançado a qualquer momento do jogo para lhe pôr fim.


Mas não é só: ao contrário do que afirma o STF e repetem de forma apressada alguns analistas, a Justiça do Trabalho não está a descumprir o Tema 725 do STF. O argumento que move o STF, e que analistas fazem eco, é simples, em verdade simplório: a Justiça do Trabalho não está reconhecendo a validade dos contratos que o STF afirmou que são válidos. O argumento é tão simples quanto errado. A Justiça do Trabalho, nos processos em que reconhece o vínculo de emprego, constata a fraude em relação a um contrato civil. Para a existência de uma fraude há a necessidade do reconhecimento da existência legal de um contrato válido, mas que não se verifica no caso concreto analisado. Um golpe só é golpe porque aparenta a forma de um negócio jurídico válido, caso contrário ele é violência. Assim, a Justiça do Trabalho não nega a validade de nenhum contrato em tese, mas analisa o quadro fático e verifica se há os elementos do vínculo empregatício, como determina expressamente o art. 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, no qual habita o princípio da primazia da realidade sobre a forma. Desta forma, a Justiça do Trabalho não despreza os contratos civis, mas sim reconhece que naquela relação específica, com base nos fatos trazidos aos autos, não há aquele contrato, e sim uma relação de emprego dissimulada. Aliás, isso é reconhecido até por algumas decisões do STF, como na Reclamação 56.285/SP e em outras. O comportamento contraditório, no caso, é todo do STF.


E é dessa forma (não a contradição, mas a verificação do contrato nos fatos) que ocorre no mundo inteiro, conforme se verifica no texto expresso da Recomendação nº 198 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que afirma no parágrafo 9º, que a existência da relação deve ser verificada em relação aos fatos, não importando como é caracterizada nos arranjos contratuais. No parágrafo 4º, a OIT conclama que os Estados devem “combater as relações de trabalho disfarçadas”, pelo “uso de acordos contratuais que escondam o verdadeiro status legal” e “que possuam o efeito de privar trabalhadores de sua devida proteção”. Um exemplo disso se deu na famosa decisão da Suprema Corte britânica no caso Uber, que aplicou expressamente o princípio da primazia da realidade. Afirmou a Suprema Corte do Reino Unido que “o ponto de partida deve ser sempre a linguagem da lei, não o rótulo usado pelas partes; simplesmente porque as partes usaram a linguagem do trabalho autônomo não significa que o contrato não é regido pela legislação trabalhista”. A mesma coisa ocorreu na França, na Holanda e na Espanha em casos famosos de trabalhadores em plataforma, todos ratificados pelas cortes superiores. Verifica-se, no caso, que se há uma jabuticaba entre as Cortes Superiores essa corte é o Supremo Tribunal Federal.


Nos Estados Unidos não é diferente: o governo Biden anunciou que a prioridade é o cumprimento da Recomendação nº 198 da OIT e o combate à fraude à relação de emprego. Aliás, há um estudo que demonstra que a pretensão de facilitar a contratação de trabalhadores como se fossem trabalhadores autônomos, como anunciada no Governo Trump nos Estados Unidos, custaria ao menos 3,7 bilhões de dólares aos trabalhadores e mais de 750 milhões de dólares de contribuições sociais não recolhidas.
Essas decisões do Supremo Tribunal Federal, além de inéditas no mundo, não são somente um perigo para a existência da Justiça do Trabalho e do direito do trabalho, mas são extremamente ameaçadoras para o cumprimento dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Como afirmou o Ministro Barroso em seu discurso de posse como Presidente do STF, os direitos fundamentais são “os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna” Segundo ele, “direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”. O afastamento da relação de emprego pela mera existência de um contrato escrito tem em si a potência de destruir toda a proteção trabalhista no País. Não há a possiblidade fática do vínculo empregatício ser facultativo e a relação de emprego continuar existindo.

Todo empresário, como ser racional, vai maximizar seu lucro e, consequentemente, vai impor aos trabalhadores, como condição para serem contratados (ou permanecerem com seu emprego) a assinatura de contratos civis. Aqui sim, nem mesmo os empresários que desejam cumprir a legislação trabalhista o poderão, porque vão ter como concorrentes outros empresários que realizarão contratações mais baratas. Não é assim só no Brasil, é assim no mundo. E nenhum trabalhador poderá recusar a imposição empresarial, sob pena de não ter emprego. O caso da “opção” do FGTS está aí na história para quem quiser ver.


Assim, tudo cai como em um castelo de cartas. Não somente os direitos trabalhistas infraconstitucionais são exterminados, mas também os direitos fundamentais previstos no art. 7º da Constituição, que ficarão lá como enfeite, bem como toda a proteção à liberdade sindical, que será transformada em representação de ninguém ou quase ninguém. O trabalho em condições análogas de escravo grassará e explodirá, e ninguém será responsabilizado. Isso aqui não é uma suposição, pois recentemente em determinado julgamento de ação civil pública que denunciava condições análogas à de escravo no Tribunal do Trabalho do Rio de Janeiro a alegação da empresa foi justamente que eram contratos civis e que a Justiça do Trabalho era incompetente. Caso vigorasse nessa turma do TRT a tendência externada em algumas reclamações constitucionais, os trabalhadores, transformados magicamente em empreendedores, teriam continuado a dormir em papelões no chão e ingerir sobras de comidas. A arrecadação da seguridade social vai despencar, e o FGTS, responsável por financiar o saneamento básico e as moradias populares, simplesmente deixaria de existir. Talvez os ministros do STF, que alguns se dizem consequencialistas, ainda não se atentaram às consequências das suas decisões.


Mas não é só os direitos fundamentais positivados em nossa Constituição que estão em jogo. Há vários pactos internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil que ficariam descumpridos. A Convenção Americana de Direitos Humanos, pelo seu protocolo adicional de San Salvador, estende uma série de direitos previstos em nossa Constituição a todos os trabalhadores, entre eles limitação da jornada, repouso, férias, estabilidade no emprego, direito à promoção, salário equitativo, entre outros. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também traz um rol bem extenso de direitos trabalhistas a todas as pessoas. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 também traz o seu próprio rol de direitos basilares a uma pessoa humana. O Supremo Tribunal Federal poderia até tentar resolver o impasse que criou com a Justiça do Trabalho em uma interpretação evolutiva do art. 7º, que fala que os destinatários são os trabalhadores, em sentido amplo, como está também nos pactos, mas aparentemente esse não é o projeto do Supremo Tribunal Federal.


Assim, o processo de esvaziamento dos direitos fundamentais e dos direitos humanos realizado pelo Supremo Tribunal Federal atual tem que ser apontado. A tentativa de retirar da Justiça do Trabalho sua competência constitucional de acordo com os parâmetros mundiais é, ao fim e ao cabo, trágico não somente para a existência do ramo, mas para a proteção dos direitos humanos. A Justiça do Trabalho terá seu fim, pois não sobrarão mais jurisdicionados. O direito do trabalho será uma peça de museu, e a Constituição conterá um capítulo de direitos fundamentais abandonado, em ruínas, transformado em letras perdidas esvaziadas de qualquer valor normativo justamente por ato da Corte que teria o papel de realizar sua proteção. Pouco importa se isso ocorre por ideologia ou por ignorância do funcionamento do direito do trabalho e da Justiça do Trabalho, o fato é que este é o caminho que está sendo trilhado.


Somente o STF pode resolver essa crise. A Justiça do Trabalho não pode recuar, pois ela estaria se suicidando ao descumprir sua missão constitucional. Caso não seja revertida a posição da Suprema Corte, única no mundo, uma verdadeira jabuticaba, o caso deve ser levado às cortes internacionais de direitos humanos para que o Estado Brasileiro seja responsabilizado pela política realizada pela Suprema Corte. O Supremo Tribunal Federal não detém a última palavra em direitos humanos, não podendo passar por cima deles como está fazendo.

Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP.

A revolução retrógrada da Era Barroso: um avanço contra os Direitos Humanos no trabalho

Fellipe Sampaio – SCO STF

Por Rodrigo Carelli no GGN

A atual composição do Supremo Tribunal Federal – STF vem sendo comparada à Era Lochner, que, a partir do fim do século XIX e início do século XX, foi o período mais conservador da Suprema Corte estadunidense, caracterizada pelo ativismo judicial para desconstruir os direitos sociais democraticamente construídos. O período atual realmente guarda muitas coincidências com aquela composição da corte máxima do grande país do Norte, mas neste início de texto deve ser justificada a razão pela qual devemos chamar a presente fase de Era Barroso. Essa proposta não afirma que Barroso está sozinho na linha de retorno ao século XIX, afinal não se faz uma corte com um julgador só. Claramente há outros, alguns mais ruidosos e menos elegantes, outros mais silenciosos, mas não menos atuantes. A proposta se deve ao fato de que Barroso se apresenta como o líder intelectual e porta-voz das atuais mudanças propostas, progressistas nos costumes, e retrógradas em relação aos direitos sociais. Barroso apresenta suas propostas não somente em seus votos e nos debates na corte, mas também em palestras ao redor do mundo desenvolvido, na forma de “uma agenda para o Brasil”.

A Era Barroso não se inicia com a sua chegada à presidência (do STF, não da República), mas está em movimento desde meados da década passada, com a autopromoção do STF à condição de protagonista do processo chamado de “Reforma Trabalhista”, precedendo nos pilares centrais às mudanças legislativas ocorridas em 2017, defendendo essas alterações mesmo com suas patentes contradições ao texto constitucional e aprofundando-a de forma agressiva.

A chegada à presidência do Ministro Barroso parece ser o clímax desse movimento de forte ativismo judicial retrógrado. De fato, apesar de ser um tanto assustador, o presidente do STF recém-empossado foi a Paris participar de um fórum, patrocinado por think tank da elite econômica brasileira, para conversar com empresários brasileiros com o objetivo de “vir ao espaço público e explicar o que está acontecendo no Supremo Tribunal Federal.” Barroso inicia sua fala justificando sua presença no evento para que o Supremo possa “se comunicar com a sociedade”.  A razão dessa comunicação com a sociedade brasileira ser feita em Paris, e não em qualquer cidade pátria, e o público ser somente composto de empresários brasileiros, pode ser encontrada nas estratégias que geraram a própria Análise Econômica do Direito, à qual o ministro parece seguir. Essa prestação de contas, nos dizeres do Presidente Barroso, é muito elucidativa para o que está por vir em sua gestão na Suprema Cote do Brasil.

O Ministro Barroso inicia sua fala afirmando que o protagonismo do STF se dá pela natureza da nossa Constituição, que é abrangente, e trata de vários sistemas em seu bojo, ao contrário de outros diplomas. Interessante que o Presidente da Suprema Corte cita nove grandes temas tratados sistematicamente na Constituição, mas não fala do sistema constitucional de proteção ao trabalho. Em seguida, afirma que o STF é uma instituição que apoia o empreendedorismo e a valorização da livre iniciativa, mas de forma curiosa se esqueceu que nas duas únicas vezes que a Constituição, aquela escrita e promulgada, cita a livre iniciativa fez por bem preceder a ela os valores sociais do trabalho e a valorização do trabalho humano.

Mas não é que Barroso se esqueceu da questão do trabalho, muito pelo contrário. Para justificar a atitude pró-empreendedorismo da Suprema Corte, listou uma série de atitudes do tribunal: afirmou que o STF garantiu a prevalência do negociado sobre o legislado “muito antes da reforma trabalhista”, validou a reforma, “inclusive em relação à contribuição sindical obrigatória”, “validou a terceirização em atividades econômicas fins e derrubou as leis que proibiam o transporte individual por aplicativo”. Como o fim da contribuição sindical obrigatória pode ter a ver com a valorização da livre iniciativa, isso somente o ministro pode dizer, mas a prestação de contas foi feita. O que ele deixa a perceber é que o que entende por defesa do empreendedorismo é a retirada de direitos trabalhistas.

Em seguida, o ministro volta a falar de trabalho, novamente com o tom negativo e sem qualquer correlação com o texto constitucional. A primeira área que cita ao falar de insegurança jurídica é a área trabalhista. Afirmou que o custo de uma relação trabalhista só se sabe ao final e que há 5 milhões de processos trabalhistas, oriundos de alguns empresários que se comportam mal, a existência de uma “indústria de reclamações trabalhistas” e a legislação, que é “de uma tal complexidade que mesmo quem queira cumpri-la não consegue cumprir adequadamente.”

O Ministro ainda se mostra incomodado com o número de ações trabalhistas. Deve ser lembrado que em evento mais uma vez ocorrido na Europa, desta feita em Londres, Barroso chegou a afirmar o dado falso que o Brasil detinha 98 por cento das ações trabalhistas de todo o mundo. Em Paris, 5 anos depois, Barroso se agarrou a um dado correto, mas sem colocá-lo em perspectiva. Barroso não falou que temos mais de 6,4 milhões de casos criminais em andamento, muito menos se mostrou preocupação quanto a isso. Não falou também dos 10 milhões de casos da Justiça Federal, que tem a União em sentido amplo como parte, que gera, portanto,  o dobro de casos em comparação com todos os empregadores do Brasil. O Ministro Presidente, da mesma forma, não citou que o assunto mais demandado não só na Justiça do Trabalho, mas em todo o sistema judiciário, como aponta o Anuário da Justiça 2023 do Conselho Nacional de Justiça, é a rescisão do contrato de trabalho. Ou seja, a causa mais frequente de ajuizamento de ações no país é justamente a dispensa de trabalhador sem pagamento de verbas rescisórias.

Nos círculos empresariais, nos jantares europeus pós-eventos, o Ministro deve ouvir a máxima de senso comum que corre nesse meio de que “o empresário somente fica sabendo o custo do trabalho quando termina a relação”, que é desprovida de qualquer sentido de realidade no dia a dia das relações de trabalho, em que empresas têm na ponta do lápis todos os custos e riscos de descumprimento da legislação. O que ocorre é justamente o inverso: vários processos terminam na Justiça do Trabalho com valores muito menores do que são devidos aos trabalhadores, pois o trabalhador tem fome, e verbas rescisórias são verbas alimentícias, e qualquer valor ofertado pode ser irrecusável. Se o Ministro fosse buscar na empiria, e não em discursos ideológicos, veria que existe mesmo uma indústria: uma indústria de descumprimento de direitos básicos, previstos em sua maioria na Constituição como direitos fundamentais.

Se o Ministro quiser mesmo entender as razões do número de ações trabalhistas, deve buscar nos números, ir aos dados e analisá-los, e não se basear mais uma vez no senso comum. Em 2022 foram 20.610.413 de dispensas no Brasil contra 3.179.259 ações trabalhistas ajuizadas. Ou seja, bem menos do que 15% dos trabalhadores formais dispensados ajuizaram reclamações na Justiça do Trabalho, pois temos que somar às dispensas dos trabalhadores formais todos os trabalhadores sem carteira assinada do país e os falsos autônomos, buscando o reconhecimento do vínculo de emprego. No Brasil, tomando 2022 como base, se compararmos os trabalhadores empregados sem carteira e com carteira assinada, sem contar as fraudes, temos 33 por cento de trabalhadores sem CTPS anotada. Ou seja, se ocorresse a mesma proporção de dispensas, teríamos mais 6.866.804 de trabalhadores dispensados, o que redundaria em que somente 11 por cento dos trabalhadores mandados embora ajuizaram ações. Dado o tamanho do descumprimento da legislação no país, o número de ações trabalhistas no Brasil deveria ser muito maior do que é, não o sendo por diversos fatores que não temos aqui tempo de listar. 

O Ministro Barroso, ao falar da complexidade da legislação trabalhista, aliás recém reformada em mais de 100 dispositivos, a qual inclusive o Ministro usou como defesa perante os empresários, como sinal de valorização do empreendedorismo pelo STF, deveria ter tratado do estranho fenômeno das empresas sem ações trabalhistas, ou com níveis baixíssimos de judicialização das relações. Com a frase de senso comum empresarial apresentada pelo ministro seria difícil explicar o fato de que o maior litigante na Justiça do Trabalho, o Banco Santander, com 52 mil empregados e 58 mil trabalhadores, contando terceirizados, concentra 0,42% de todas as ações trabalhistas do Brasil, tendo apenas 0,0013% dos empregados no país.

Talvez estudando esse fenômeno poderia perceber que também se trata de uma lenda urbana a afirmação da impossibilidade de cumprir a lei, afirmação gravíssima para quem ocupa o mais alto posto do Judiciário, podendo ser entendido pelos cidadãos que realmente não precisa cumprir a lei, dado que, conforme garantiu o Presidente do STF, trata-se de desafio impossível, portanto completamente escusável.

Mas o discurso do Ministro Barroso fica extremamente contraditório quando apresenta uma “lista pessoal” do que nomeia de “uma agenda para o Brasil”. Apesar de afirmar que os itens apontados estão na Constituição, a seleção e escolha são evidentemente do ministro. Inicialmente, afirma que o grande problema do Brasil seria a pobreza e a desigualdade, citando dados alarmantes. Entretanto, como acabar com esses problemas destruindo o direito do trabalho, exímio redutor de desigualdades, o Ministro não explica. Afirma o Presidente do STF que sem crescer não haverá o que distribuir, lembrando muito o mote econômico da ditadura na época do AI-5: “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”; o bolo cresceu, mas a divisão dele nunca aconteceu nas classes mais baixas, que tiveram salários reduzidos e decréscimo na participação da renda nacional.

Essa “agenda para o Brasil” tinha sido lançada no seu discurso de posse na presidência do STF.  A lista da agenda na posse é ligeiramente diferente da apresentada aos empresários, pois junto com a valorização da livre iniciativa o ministro colocou a expressão “do trabalho formal”. Apesar de ausente na fala de Paris, os “direitos humanos” aparecem cinco vezes em Brasília. “Direitos Fundamentais”, conceituados no discurso na capital federal como “os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna”, aparecem seis vezes. Segundo o Presidente, os “direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”. Não há como não concordar com o ministro neste ponto.

Não há como concordar com o ministro, no entanto, na ausência do direito do trabalho em ambos os discursos. Não dá para concordar também com a colocação da valorização da iniciativa privada na frente do trabalho, pois essa não é a ordem constitucional, nem no art. 1º, nem no art. 170, que colocam a valorização do trabalho na frente da iniciativa privada.

O Direito do Trabalho está na Constituição no Capítulo II do Título II, denominado de “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Ou seja, segundo o próprio conceito do Ministro, os direitos trabalhistas ali listados são os direitos humanos positivados e que incorporam a reserva mínima de justiça na sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna. Assim, a exclusão de trabalhadores da proteção constitucional dos direitos fundamentais é algo gravíssimo, pois impede o acesso a essa reserva mínima de justiça.

O que estamos vivenciando é uma revolução que é apresentada com ares de modernidade, de luz e de progresso, mas que não consegue esconder seu caráter eminentemente retrógrado. É  uma revolução comandada pelo STF, que propõe em sua agenda um retrocesso da proteção social à virada do século XIX para o século XX. O avanço que faz o STF sobre a relação de emprego, na pretensão de que as fórmulas contratuais civis prevaleçam sobre os fatos reveladores de uma relação de emprego, é o maior ataque aos direitos sociais já visto no Brasil. Ele tem a possibilidade real de esvaziar de conteúdo toda a proteção trabalhista presente na Constituição e nas leis infraconstitucionais, além dos tratados internacionais firmados pelo Brasil durante o século XX. Torna letra morta todas as normas de combate ao trabalho escravo contemporâneo, a proteção ao meio ambiente laboral, a discriminação no trabalho, a proteção à gestante e à criança e adolescente. Permite a exclusão da proteção por um mero papel assinado, ou mesmo um “Li, aceito e concordo com os termos de uso” em um aplicativo qualquer, submetendo o trabalhador à autoridade inapelável do algoritmo.

O Ministro Barroso citou algumas vezes o Admirável Mundo Novo em seu discurso em Paris, com um tom de maravilha pelo avanço tecnológico digital. Parece que o Presidente do STF não leu a obra de Aldous Huxley, que mostra um mundo distópico no qual as pessoas são divididas em castas controladas e incentivadas a se conformar com regras autoritárias. Nesse mundo, um dos deuses é justamente Henry Ford como representação da tecnologia. O mundo tecnológico de hoje não pode ser de forma alguma um retrógrado admirável mundo novo, mas sim um mundo justo, solidário e igualitário como descrito na Constituição de 1988.

O artigo não manifesta necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP.