O iminente golpe de Estado na Venezuela: uma usurpação da realidade

Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.

Na cerimônia de sua posse ocorrida alguns dias atrás, o atual presidente da República e seu vice (este último fazendo-o aos berros) juraram fidelidade à Constituição nacional. Prometeram observar os preceitos estabelecidos na Carta Maior de nosso ordenamento jurídico. Comprometeram-se com o Estado de Direito e com seus princípios fundamentais. Pobre de quem acreditou.

Em uma de suas últimas aparições, o eleito – na ilustre companhia do presidente da Colômbia, da vice-presidente do Peru e da chanceler do Canadá – reconheceu o autoproclamado “presidente interino” da Venezuela, Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional daquele país.

Passando os olhos em algumas notícias da CNN e depois em alguns dos tradicionais veículos de comunicação do Brasil, ouço que Guaidó assumiu a presidência do país porque o atual presidente, Nicolás Maduro, é um “usurpador”. Além disso, membros da oposição venezuelana, em entrevistas, alegam que a assunção do presidente da Assembleia Nacional dá-se em razão do artigo 233 da Constituição daquele país[1]. Não é preciso dizer que nenhum integrante do governo foi entrevistado, e nem mesmo qualquer personalidade que pudesse trazer o contraponto da opinião “dominante”. O anti-jornalismo impera de forma vergonhosa.

O artigo diz que, caso haja “falta absoluta do Presidente eleito ou Presidenta eleita”, far-se-ão novas eleições em trinta dias, durante os quais o Presidente da Assembleia Nacional tomará posse como Presidente da República. Mas foi o que aconteceu? Parece óbvio que não.

O Presidente da República, Nicolás Maduro, tomou posse exatamente na data prevista na Constituição: 10 de janeiro (art. 231). Então não há “falta absoluta”. Qual seria então o motivo dessa autoproclamação inusitada e inconstitucional? E qual seria o motivo de países como Brasil, Colômbia, Peru, Argentina e outros organismos como a OEA apoiarem-na? Seria seu alinhamento bovino aos interesses norte-americanos pelos riquíssimos campos de petróleo venezuelanos (os maiores do mundo)? Talvez.

Mas talvez porque o presidente venezuelano seria um ditador. E porque as eleições no país deram-se de forma fraudada. Mas ditador por quê? Eleições fraudadas por quê? Lembre-se que mais de 200 observadores internacionais, dentre eles brasileiros, franceses, espanhóis e italianos, foram convidados para acompanhar as eleições de 20 de maio de 2018 na Venezuela[2], sem que houvesse, de sua parte, informações da ocorrência de fraude apta a desmerecer o resultado do pleito.

Seria fraudada, dizem, porque líderes da oposição foram processados e presos. E também porque menos da metade da população compareceu às urnas. O país seria uma ditadura, da mesma forma, porque o governo está militarizado, pois boa parte dos altos cargos é ocupada por militares. Se for por isso, não é só por lá que há uma ditadura, não?

É dito também que se trata de um governo autoritário porque reprime com violência manifestações oposicionistas. E o que o recém-eleito governo de São Paulo fez com manifestantes absolutamente pacíficos alguns dias atrás é o quê? E o que o atual presidente da Argentina tem feito com os trabalhadores do seu país, quando tentam se manifestar contra os ataques promovidos pelo governo contra a população? Não é uma brutal repressão?

Repressão, tortura, prisões e perseguições são, infelizmente, uma tradição de países da América Latina. Algo terrível, mas que moral têm países que lançam mão exatamente das mesmas práticas para condenar um país vizinho? Por que nem os Estados Unidos nem nenhum outro desses países autodeclarados democráticos condenam a terrível ditadura da Arábia Saudita? E por que nenhuma deles é capaz de denunciar as atrocidades cometidas pelo Estado de Israel contra o povo palestino? Por que a preocupação com ditaduras dura só até a página dois?

Trata-se de uma defesa do governo do PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela)? Não. Está-se a dizer que é um bom governo? Muito menos. Que não tem vários defeitos, inclusive os elencados acima? Menos ainda.

Mas mostra-se pertinente repudiar, com veemência, a usurpação da realidade pela comunidade internacional e pelos seus principais veículos de comunicação – com destaque para os brasileiros. Isso sim é uma usurpação. Tirar de um povo a capacidade de eleger seu governante é uma usurpação.

Voltando à Constituição brasileira – e numa disputa para ver quem mais descumpre sua constituição não tenho dúvidas de que o Brasil seria forte candidato ao título mundial –, está escrito no seu artigo 4º que nossa república regerá suas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.

O papel do governo brasileiro – assim como dos outros do continente – é mediar o conflito na Venezuela. É auxiliar no encontro de uma solução pacífica para o impasse que se arrasta há anos, e que tende a piorar com as famosas “sanções” prometidas – algumas já executadas – por Mr. Trump. Mas deixar os venezuelanos decidirem seu destino. Respeitar a decisão soberana do povo da Venezuela, já tão massacrado pela desestabilização promovida no país. Não por gostar daqueles que hoje estão no poder, mas por mandamento constitucional. Isso mostraria grandeza do governo brasileiro. Mas, para nosso azar, ele escolheu a subserviência.

Enquanto isso, na terra da democracia, um deputado eleito desiste de seu mandato e vai morar no exterior, temendo por sua vida.

Gustavo Roberto Costa – Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.

 


[1] Artículo 233. Serán faltas absolutas del Presidente o Presidenta de la República: la muerte, su renuncia, la destitución decretada por sentencia del Tribunal Supremo de Justicia, la incapacidad física o mental permanente certificada por una junta médica designada por el Tribunal Supremo de Justicia y con aprobación de la Asamblea Nacional, el abandono del cargo, declarado éste por la Asamblea Nacional, así como la revocatoria popular de su mandato.

Cuando se produzca la falta absoluta del Presidente electo o Presidenta electa antes de tomar posesión, se procederá a una nueva elección universal, directa y secreto dentro de los treinta días consecutivos siguientes. Mientras se elige y toma posesión el nuevo Presidente o Presidenta, se encargará de la Presidencia de la República el Presidente o Presidenta de la Asamblea Nacional.

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