Por que a confissão nem sempre deve levar à condenação?

Por Rômulo de Andrade Moreira, no Empório do Direito.

Foi divulgado pela BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que o sueco Sture Ragnar Bergwall confessou ter cometido 39 assassinatos de homens, mulheres e crianças.

Os casos relatados por ele incluíam estupros, mutilações e até episódios de canibalismo. E, ao longo das décadas de 1990 e 2000, foi condenado a dezenas de anos de prisão por oito destes crimes. Mas, na verdade, ele era inocente — não havia matado ninguém.

Todas as suas confissões comprovaram-se falsas. Sua história ficou mundialmente conhecida, chegando a ser chamado de monstro pela imprensa internacional, que o comparava ao personagem Hannibal Lecter, o sádico serial killer do filme “O Silêncio dos Inocentes”.

A “verdade” só foi descoberta em 2013, graças ao minucioso trabalho de investigação do jornalista sueco Hannes Råstam. Depois disso, todas as suas condenações foram anuladas. Prestes a completar 70 anos, Sture Ragnar Bergwall está em liberdade, vive em um lugar sigiloso, fora da Suécia, e tenta recomeçar sua vida.[1]

Este fato real leva-nos a questionar a validade absoluta deste “meio de prova”[2] que, muita e muita vez, após o depoimento do acusado, é utilizado como elemento de prova e, depois, valorado pelo Juiz para fundamentar uma sentença condenatória, nada obstante o próprio Código estabelecer que “o valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.” (art. 197, grifei).[3]

A confissão, outrora considerada como a regina probationum, deve ser sempre valorada pelo Juiz a partir da análise conjunta com os outros elementos probatórios constantes do processo; assim, deve ser corroborada por outros elementos de prova também admitidos no processo penal, e avaliada em conformidade com o sistema do convencimento fundamentado (e não do livre convencimento, como ainda quer fazer crer alguma doutrina, um tanto defasada).

Aliás, no processo penal, nenhum elemento de prova possui este atestado absoluto de idoneidade para comprovar determinado fato, nem mesmo as provas técnicas.[4] O que pode ocorrer, e efetivamente acontece, é que determinados fatos só podem ser provados a partir da produção de meios de prova específicos, como, por exemplo, a morte da vítima (que deve ser comprovada pelo respectivo laudo de exame cadavérico), a falsidade material de um documento (comprovada apenas a partir de uma perícia), a morte do agente (cuja prova, para efeito de declaração da extinção da punibilidade, deve ser feita com a respectiva certidão de óbito), etc.

A propósito, Durán afirma que “la confesión del acusado consiste en el expreso reconocimiento de haber ejecutado el hecho delictivo de que se le acusa. Existe confesión aun cuando el reconocimiento del acusado sea parcial, bien porque sólo admita una parte del hecho o de los hechos imputados al mismo, bien porque se limite a considerarse como un simple cómplice de la perpetración del delito, rechazando su consideración como autor o como cooperador necesario”.[5]

Esta “relatividade” emprestada à confissão se deve, especialmente, ao fato de que várias circunstâncias, pessoais ou não, podem levar alguém a confessar uma infração penal, sem que tenha sido o seu verdadeiro autor. Veja-se o caso do sueco Bergwall.

Como diz Mittermaier, “as consequências da confissão são tão graves que convém que ela seja feita com uma precisão extrema. Só a precisão pode fornecer os meios de verificar o seu conteúdo, com o auxílio das outras provas; e, além disto, atesta que o acusado, conhecendo a extensão dos perigos a que se expõe, não obstante, quer obrar e falar seriamenteA confissão deve ser o produto da vontade livre do acusado; é preciso que ele tenha tido a intenção firme de dizer a verdade; é preciso que nem o temor, nem o constrangimento, nem alguma inspiração estranha pareça ditar-lhe os meios[6]

Ademais, cabe aqui a advertência de Ferrajoli de que, em respeito à pessoa do imputado e à inviolabilidade de sua consciência, proíbe-se “non solo de arrancar la confesión con violencia, sino también de obtenerla mediante manipulaciones de la psique, con drogas o con prácticas hipnóticas”, mesmo porque o interrogatório (de onde surge a confissão) sujeita-se a ”una serie de reglas de lealtad procesal“.[7]

Neste sentido, o art. 8º., 3 do Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, estabelece que “a confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza”.

Assim, se, historicamente, a confissão já foi considerada a “rainha das provas”, a ponto de serem legítimos, para consegui-la, métodos verdadeiramente desumanos, como a tortura, hoje – e desde há muito – a posição da doutrina e da jurisprudência é diversa.[8]

Em definitivo, é preciso aprender com a literatura que “o carácter secreto do crime contribui para o que dele, ou à roda dele, se observe, seja imperfeitamente observado, e o seu carácter interessante tende a produzir testemunhos de natureza involuntariamente conjetural, e os elementos emotivos, que sugere, a evocar testemunhos de carácter preconceitual.”[9]

Portanto, é necessário ter cautela e desconfiança quando se trata de avaliar uma confissão; pode não ser “a verdade”, afinal de contas nem sempre “a verdade é o resultado dos debates no tribunal.”[10]

Notas e Referências

[1] Veja aqui a entrevista de Bergwall: https://www.bbc.com/portuguese/geral-49766887, acessado em 07 de outubro de 2019.

[2] Concordo com Badaró, para quem, “a confissão não é meio de prova, mas o resultado, eventual, do interrogatório, resultado de uma declaração de vontade que deve ser formalizada, podendo ser realizada dentro ou fora do processo.” (BADARÓ, Gustavo Henrique, Processo Penal, São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 3ª. edição, 2015, p. 447).

[3] No projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal (Projeto de Lei nº. 8045/2010), a confissão não mais está prevista como meio de prova, sendo referida no art. 72: “Quando o interrogando quiser confessar a autoria da infração penal, a autoridade indagará se o faz de livre e espontânea vontade.” Este artigo está inserido na seção pertinente ao interrogatório e no capítulo relativo ao acusado e seu defensor.

[4] Importante aqui deixar consignada a nossa concordância com Geraldo Prado, a quem, com carinho, dedico este artigo: “a confiabilidade quase cega que se costuma devotar ao que provém das perícias, em um ´apego ferrenho àquela concepção ultrarracionalista da prova`, segundo Antonio do Passo Cabral, em geral é causadora do denominado ´fetiche da prova técnica` que tende a tornar inoperantes os esforços de contradição das condições epistemológicas de configuração do elemento probatório.” (PRADO, Geraldo, A cadeia de custódia da prova no processo penal, São Paulo: Marcial Pons, 1ª. edição, 2019, p. 97).

[5] DURÁN, Carlos Climent, La Prueba Penal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 277.

[6] MITTERMAIER, C. J. A., Tratado da Prova em Matéria Criminal, Campinas: Bookseller, 1996, 3ª. edição, páginas 199 e 206.

[7] FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón, 3ª. ed., Madrid: Trotta, 1998, p. 607.

[8] Veja-se Foucault, comentando o processo medievo: “A confissão transcende qualquer outra prova; elemento no cálculo da verdade, ela é também o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que esta é bem fundamentada; transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmação voluntária. Pela confissão, o próprio acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal. Como já dizia o direito medieval, a confissão torna a coisa notória e manifesta; todas as formas possíveis de coerção serão utilizadas para obtê-la.” (FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, Petrópolis: Editora Vozes, 1998, 18ª. edição, p. 35).

[9] PESSOA, Fernando, Novelas Policiárias – Uma Antologia, Porto: Porto Editora, 2006, páginas 39 e 40.

[10] TOLSTÓI, Liev, Ressurreição, São Paulo: Cosac Naify, 2015, 2ª. edição, p. 309.

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