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Além da Vaza-Jato: juiz e promotor ‘juntos e shallow now’ é comum no Brasil

Por Arthur Stabile, na Ponte Jornalismo.

A relação promíscua entre um juiz, que deveria ser imparcial, e um promotor responsável pelas acusações veio à tona com a série de reportagens do Intercept Brasil que mostrava conversas privadas entre o então juiz Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PSL), com o promotor do Ministério Público paranaense Deltan Dallagnol, no processo da Operação Lava-Jato que levou à condenação e prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT). Apesar de ser ilegal, prejudicar o direito de defesa e facilitar a condenação de inocentes, a atuação de juízes mancomunados com promotores e procuradores está longe de ser incomum nos tribunais brasileiros.

O novo Direito Processual Penal uruguaio

Por Rômulo de Andrade Moreira, no Justificando.

No mês de julho do ano de 2016 estivemos, eu e outros Professores de Direito Processual Penal do Brasil, em Santiago do Chile. Foi uma grande experiência proporcionada pelo Centro de Estudios de Justicia de la Américas (CEJA), pelo Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e também Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP). Participamos do “Programa de Herramientas para la Implementación de un Sistema Acusatorio en Brasil.” Grande oportunidade também o foi para aprendermos com os chilenos.

NOTA PÚBLICA – A Censura aplicada ao juiz Roberto Corcioli fragiliza o Estado Democrático de Direito

Publicado no site da AJD.

A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem por finalidade estatutária o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, nos quais se inserem a independência do Poder Judiciário, vem a público repudiar a condenação à penalidade administrativa imposta ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, pelos motivos que passa a expor.

1 – Conforme sessão realizada em 8 de agosto passado, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou, ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, a penalidade administrativa de censura.

2 – O problema, de demasiada gravidade, é que os fatos que ensejaram a sanção consistem em decisões proferidas pelo referido magistrado paulista na esfera de sua independência funcional e que poderiam ser objetos de impugnação pela via recursal adequada. Todavia, substituiu-se tal via para o intimidatório caminho correcional.

3 – Importante considerar que grande parcela das decisões judiciais em questão têm a característica de limitarem a atividade punitiva estatal e de privilegiarem a liberdade do ser humano sobre a custódia. Acrescente-se que tais atos decisórios foram devidamente fundamentados em dispositivos legais e constitucionais em vigor no Brasil e em sólidas doutrina e jurisprudência.

4 – Há, portanto, um componente ideológico na sanção aplicada. Puniu-se um juiz de direito em razão dos seus posicionamentos jurisdicionais que caminham no sentido de um Direito Penal limitado, tal como, aliás, vigora nos países em que prevalecem as liberdades públicas sobre um todo poderoso Estado-Leviatã.

5 – Cabe lembrar que a independência do Poder Judiciário consiste em importante conquista do Estado de Direito, sendo considerado um de seus requisitos essenciais. Tal garantia implica na atribuição a todos os que exercem a magistratura – de um Juiz Substituto recém-ingresso na carreira a um ministro do Supremo Tribunal Federal – da possibilidade de decidirem conforme sua convicção jurídica, livres de qualquer instrumento de pressão indevida por parte dos demais agentes oficiais.

6 – Não há como interpretar a sanção aplicada ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho senão como uma punição aos entendimentos jurídicos adotados pelo magistrado. Entendimentos, diga-se de passagem, que seguem o sentido contrário das atuais políticas públicas responsáveis pelo vigente aprisionamento em massa, que fazem o Brasil ocupar a vergonhosa posição de terceira maior população carcerária do mundo, formada basicamente pela população negra, pobre e periférica.

7 – O magistrado limitou-se a exercer seu poder – dever de controlar tais políticas, o que se amolda à função que se espera do próprio Poder Judiciário na esfera do sistema de freios e contrapesos que caracteriza a separação dos poderes em um Estado Democrático de Direito. O juiz punido mostrou, com suas decisões, que a atividade jurisdicional não é e nem pode ser um mero órgão chancelador da atividade policial da Administração Pública.

8 – Por tudo isso, a punição contra Roberto Luiz Corcioli Filho não viola apenas as prerrogativas do magistrado. Viola o próprio Estado Democrático de Direito, fragilizado, em primeiro lugar, por ter um juiz punido por controlar, com rigor, a atividade punitiva do Estado Administração; fragilizado, ainda, pelo fato de a punição em debate ter sério potencial de amedrontar os demais magistrados em exercer o poder-dever de realizar a mesma espécie de controle.

9 – Lembra-se, por fim, que em julgamento sucedido em 28 de agosto de 2017 acerca de caso semelhante (Kenarik Boujikian versus TJSP), o Conselho Nacional de Justiça, por intermédio do então conselheiro Gustavo Alkmim, entendeu que: “Punir um magistrado por sua compreensão implica na maior violência que se poderia conferir à sua atividade jurisdicional, essencial ao estado democrático de direito”.

10 – Por tudo isso, a Associação Juízes para a Democracia sustenta o caráter de grave antijuridicidade da pena aplicada ao Juiz de Direito Roberto Luiz Corcioli Filho, clamando pelo decreto de invalidade do ato pelos órgãos competentes e para que os tribunais do país se atenham ao respeito à independência funcional como imperativo democrático.

São Paulo, 10 de agosto de 2018.

CO-ASSINAM ESTA NOTA:

ARTIGO 19

CONECTAS

IBCCRIM

JUSDH

NÚCLEO ESPECIALIZADO DE SITUAÇÃO CARCERÁRIA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

TERRA DE DIREITOS

TRANSFORMA MP

Lenio Streck: ‘Aplicar a Constituição, hoje, é um ato revolucionário’

Publicado originalmente no Brasil de Fato.

São Paulo – “Preocupa-me que decisões fundamentadas a favor da liberdade sejam censuradas. E decisões mal fundamentadas – e existem milhares – que punam sejam consideradas como boas ou adequadas.” A avaliação é do professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito Lenio Streck e diz respeito à pena de censura imposta pelo órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, na última quarta-feira (8).

O juiz foi alvo de uma representação, assinada por 23 promotores públicos, pedindo abertura de um procedimento disciplinar para apurar sua atuação. O documento, encaminhada pelo corregedor geral do Ministério Público paulista ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), sustentava que o magistrado agia “movido por ideologia contrária ao Sistema Penal vigente e favorável ao desencarceramento e absolvições”.

“Estamos em franco retrocesso. Os juízes só serão bem avaliados, vingando essa condenação, se forem punitivistas. Só que o punitivismo não está na Constituição Federal. Ao contrário: a nossa Constituição é garantista da cepa”, aponta Streck. Para ele, a decisão deve ser reformada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou no Supremo Tribunal Federal (STF). “Caso contrário, alguns ministros do STF terão contra si as mesmas acusações”.

Na sexta-feira (10), a Associação Juízes para a Democracia (AJD), junto com outras entidades, emitiu uma nota pública repudiando a pena de censura. Segundo o documento, a decisão do TJ-SP “viola o próprio Estado Democrático de Direito, fragilizado, em primeiro lugar, por ter um juiz punido por controlar, com rigor, a atividade punitiva do Estado Administração”.

Em julho, a Ong Conectas divulgou um estudo abordando como o controle interno do Judiciário influenciava a autonomia dos juízes em suas decisões e citava como emblemático da fragilização da independência funcional dos magistrados um episódio envolvendo o juiz Roberto Corcioli.

Em junho de 2013, ele foi afastado do cargo antes do fim do período da sua designação, por meio de uma notificação informal, enviada por e-mail pelo corregedor geral de Justiça à época, desembargador José Renato Nalini. A irregularidade estaria na cessação da designação antes do seu término, já que existe um período mínimo em que juízes são inamovíveis.

A suspeita é que o afastamento estaria relacionado a uma representação feita por 17 promotores de justiça perante a Corregedoria um mês antes, cuja fundamentação era de que “[…] as decisões proferidas [pelo juiz Corcioli nos plantões judiciais] têm viabilizado a soltura maciça de indivíduos cujo encarceramento é imprescindível.”

Confira abaixo a íntegra da entrevista com Lenio Streck sobre o caso Corcioli.

Como o senhor vê a decisão do TJ-SP de aplicar uma pena de censura ao juiz Roberto Corcioli em função de uma representação feita por 23 promotores?

Lenio Streck – O juiz foi condenado por crime de hermenêutica. Em 1893, o juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima também foi vítima disso. Rui Barbosa defendeu Lima no STF alegando essa tese e foi vencedor. Lima inaugurou o controle difuso de constitucionalidade no Brasil. Disse que um dispositivo de uma lei gaúcha, editada sob comando do positivista Julio de Castilhos, era nula, inconstitucional. Foi um escândalo, à época. Lima foi garantista antes de todos. Mas, tem coisa mais antiga: Sir Edward Coke, no início dos anos 1600, enfrentou o absolutismo dos Stuart. Ele era juiz de um pequeno tribunal. Concedeu um “mandado de segurança” para o médico Bonahn, impedido de clinicar. A tese: a ordem de proibição violava o common law. Coke anulou várias leis e prerrogativas reais. E, em pleno absolutismo, não foi condenado como foi o doutor Corcioli.

Estamos mais de 400 anos atrasados em relação à Inglaterra e mais de 100 anos em relação ao STF dos anos 90 do século XIX. No Brasil, aplicar a Constituição Federal estritamente virou um ato subversivo. Aplicar a CF, hoje, é um ato revolucionário. Cumprir as garantias constitucionais como constam na CF, cumprir os princípios de garantias, virou algo perigoso. Por isso, o doutor Corcioli deve estar se sentido como o doutor Mendonça Lima. Chamemos Sir Edward Coke. Ele bem defenderia o doutor Corcioli.

Casos como esse evidenciam formas de controle interno que acabam influenciando a atuação profissional de juízes em prol de uma postura punitivista?

Quando o juiz Sérgio Moro divulgou  – aí, sim, contra a lei e a Constituição Federal  – as conversas de Dilma e Lula e depois pediu desculpas, o Judiciário não considerou que o juiz paranaense estivesse fazendo algo errado. Interessante os pesos e medidas do Judiciário e do próprio Ministério Público. Quando eu fui procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, apliquei a CF estritamente. Fui garantista ao extremo, juntamente com os desembargadores Amilton Bueno de Carvalho e Aramis Nassif, para falar apenas destes. Quando o STJ dizia que a presença de advogado no interrogatório era desnecessária, nos anulávamos todos os processos nos quais não havia advogado. Pareceres meus. Em São Paulo, eu seria condenado. E os desembargadores gaúchos também.

E o que dizer da reincidência, que considerávamos inconstitucional? E da pena abaixo do mínimo, que aplicávamos todos os dias? E aplicávamos a lei da sonegação fiscal nos casos de furto sem prejuízo. Tudo com base na CF. Quer algo mais correto que aplicar o princípio da insignificância? Não aplicá-lo é que é inconstitucional. E assim por diante. Fui o primeiro a não aplicar a letra da lei 4611, que tratava do processo judicialiforme, em outubro de 1988. Por quê? Porque a lei 4611 era inconstitucional.

De que forma o senhor vê a proximidade de membros do Ministério Público e da magistratura no sentido de buscar mais punições, esse caso ilustra esse tipo de conduta?

Para mim, e já disse isso tantas vezes, o Ministério Público deve ser isento e não um órgão perseguidor. Ele deve cuidar da vítima, da sociedade e do réu. Aliás, o Estatuto de Roma, tão citado na Lava Jato, diz que o acusador deve investigar também a favor da defesa. E o Código de Processo Penal da Alemanha também. Lamento que o TRF4 tenha dito – e isso transitou em julgado sem protestos do MPF – que o Ministério Público não necessita ser isento. Basta ver o item 9 do acordão que condenou o ex-presidente Lula.

Que implicações essa decisão pode ter para magistrados garantistas?

Enormes. Incomensuráveis. O CNJ e o STF hão de corrigir isso. Caso contrário, alguns ministros do STF terão contra si as mesmas acusações. Hoje, quando um ministro do STF sustenta a insignificância ou concede habeas corpus mesmo contra a “colegialidade”, fosse em São Paulo, redundaria em pena de censura ao Ministro. Pensemos bem nisso. Estamos em franco retrocesso. Os juízes só serão bem avaliados, vingando essa condenação, se forem punitivistas. Só que o punitivismo não está na Constituição Federal. Ao contrário: a nossa Constituição é garantista da cepa.

Pode-se fazer um paralelo entre este procedimento contra Corcioli com o mesmo tipo de motivação que levou o desembargador Favreto ao CNJ?

Escrevi sobre o caso do desembargador Favreto no Conjur. Disse eu: é incrível como o Judiciário é contraditório. Há milhares de acórdãos que sustentam que o juiz decide com livre convencimento. Veja: eu sempre sustentei que o juiz não tem livre convencimento. E digo isso por dezenas de razões que dizem respeito à democracia. Uma delas é a de que não posso ficar à mercê do subjetivismo judicial. Mas, veja bem: se o Judiciário insiste que o juiz tem livre convencimento, como negar isso a Favreto e Corcioli?

De novo: não acho que nenhum dos dois e nem os ministros que concedem HC contra a colegialidade ou que reconhecem a insignificância estejam decidindo conforme o livre convencimento. Eles estão, claramente, ao lado da Constituição. Posso demonstrar facilmente que a CF abriga a insignificância e mostra que HC é um remédio heroico que não se submete a maiorias eventuais. Habeas é sempre um corpo que é levado, por vezes já putrefato, para os braços da Justiça. Isso vem desde os anos 1200, de novo, da Inglaterra de Coke. Pena abaixo do mínimo? Há dezenas de autores que sustentam essa possibilidade. Enfim, uma tese jurídica, se tem a Constituição como parâmetro, é lícita. Uma lei só é aplicável se estiver em conformidade com a CF. Caso contrário, a lei é nula, irrita, nenhuma. E o juiz pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses, conforme explico em vários livros meus. Ferrajoli, que foi juiz e dos bons, fosse juiz hoje em São Paulo teria contra si dezenas de representações. Afinal, ele disse uma coisa muito simples: a moral e a política devem ser filtradas pelo Direito, e não o contrário. E Direito é, primeiro, Constituição, depois, a lei.

Numa palavra: preocupa-me que decisões fundamentadas a favor da liberdade sejam censuradas. E decisões mal fundamentadas – e existem milhares – que punam sejam consideradas como boas ou adequadas. Pergunto: o desembargador do TJ de São Paulo que, em sede de HC, decretou a preventiva de uma pessoa, teve representação contra si? Escrevi sobre isso, à época, no Conjur. Nada. Quedaram-se todos silentes. Por quê? Porque punia. Prendia. O que fizemos com o Direito no Brasil? Essa resposta deve ser dada pela comunidade jurídica. Que parece estar amortecida. Na verdade, parcela considerável da comunidade jurídica foi mimetizada pelo discurso punitivista.

Opinião – Sergio Moro e a sua nova crise de instância

Por Rômulo de Andrade Moreira, no Empório do Direito.

José Frederico Marques identificava no Processo a chamada “crise de instância” ou, como preferia Carnelutti, “crise do procedimento”, consistente, nas palavras do mestre italiano, em “um modo de ser anormal do procedimento, pelo qual lhe é paralisado o curso, temporária ou definitivamente.[1] Também alguns referiam o fenômeno como “crise processual”, como era o caso de José Alberto dos Reis, citado por Frederico Marques. Haveria três espécies de crises, a saber: a suspensão da instância, a absolutio ab instantiae a cessação da instância.

O conto de natal do sistema de justiça criminal

Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.

Fórum Criminal. 24 de dezembro. 09:00 horas da manhã. Preparação para o plantão judiciário do recesso do fim de ano.

– Doutor, hoje estamos cheios de presos – avisa um dos servidores escalados. A pauta tem três laudas lotadas de números e nomes. Quatro juízes dividem as audiências de custódia. Os presos (os de sempre: negros, miseráveis, maltrapilhos, viciados, desempregados) aguardam, sob escolta fortemente armada, a chance de se manifestar perante o magistrado, e torcem por seu destino para a noite de natal.