Arquivos Diários : maio 14th, 2021

Jacarezinho, se for, vá na paz

 

Artigo de Elmir Duclerc na Carta Capital 

 

 

“A guerra é muitas coisas ao mesmo tempo, mas é inútil querer fingir que não é excitante. É insanamente excitante. A maquinaria da guerra, o barulho que ela faz, a urgência de seu uso e as consequências de quase tudo que lhe diz respeito são as coisas mais excitantes que alguém que participa de uma guerra conhecerá na vida. Os soldados debatem o assunto entre si e com seus capelães e psiquiatras, talvez até com suas mulheres, mas esse debate jamais se tornará público. É algo que nem todos estão dispostos a admitir. A sensação de estar na guerra deveria ser ruim, porque sem dúvida coisas ruins acontecem numa guerra, mas, para um rapaz de 19 anos que está atrás de uma metralhadora calibre .50 durante um combate do qual todos se saiam bem, a guerra é a vida multiplicada por um número no qual ninguém jamais ouviu falar”[1].

É o que afirma, em seu consagrado “War”, o jornalista Sebastian Junger, que entre os anos de 2007 e 2008 esteve no front da Guerra do Iraque, acompanhando as tropas estadunidenses em suas incursões na região conhecida como Vale do Korengal.

Esse trecho me veio à mente nos últimos dias, quando mais uma operação policial realizada em uma comunidade da periferia do Rio de Janeiro reascendeu o debate sobre a letalidade seletiva que parece ser a marca da atividade policial, sobretudo quando se trata da chamada política de guerra às drogas, já tão bem estudada e denunciada por diversos autores[2].

Ao mesmo tempo em que começavam a circular as notícias pelos canais oficiais de mídia, também começaram a circular nos grupos de WhatsApp vídeos de autoria desconhecida e de autenticidade não comprovada.

Um desses vídeos me chamou atenção de modo particular, porque só pode ter sido feito por algum dos policiais ou, pelo menos, alguém que acompanhava de perto a equipe. Resumindo o “roteiro”, policiais invadem uma casa simples, arrombando a pontapés a porta de entrada, e depois fazem a mesma coisa para ter acesso a um dos cômodos, onde encontram um homem deitado de bruços sobre uma poça de sangue, mas ainda vivo e consciente. O que se segue são gritos e ofensas dos policiais e uma sequência de disparos a curta distância, sem que o homem tenha esboçado qualquer reação ou resistência.

Para além da brutalidade da cena em si, fiquei muito impactado justamente pelo estado de excitação que parecia tomar conta dos policiais envolvidos, algo que imediatamente também me trouxe à lembrança algumas cenas de Bacurau, marcadamente uma, em que dois dos gringos caçadores de humanos fazem sexo no meio do mato, logo após matarem alguns alvos aleatórios. Em vários diálogos, inclusive, fica patente como aqueles turistas da morte eram completamente viciados na sensação de gozo própria da guerra, como bem descrita por Junger.

No caso da operação do Jacarezinho, há um outro dado interessante, relacionado às circunstâncias em que ocorreu: na vigência de uma decisão judicial de junho do ano passado, exarada pela mais elevada instância do Poder Judiciário, e que proibiu operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionalíssimos, por conta da pandemia do COVID-19. Conforme noticiado pela mídia, o objetivo era cumprir 21 mandados de prisão, e o argumento utilizado para contornar a proibição era impedir o aliciamento de menores por parte dos traficantes. No final da operação, entretanto, além do saldo de 28 mortes, foram presas apenas 6 pessoas e algumas armas, e nenhum adolescente foi apreendido nas “garras” dos bandidos. A fragilidade da justificativa me fez pensar, portanto, se a violência sem precedentes da incursão não seria produto de uma espécie de crise de abstinência da adrenalina da morte.

Voltando ao genial roteiro de Bacurau, que “abusa” de metáforas cirúrgicas sobre o Brasil profundo, é impossível não ver ali referência às comunidades eternamente abandonadas pelo Estado, cujos representantes só aparecem em véspera de eleição, como o político picareta Tony Junior (Thardelly Lima), e precisa se virar com os próprios recursos, contando, inclusive, com a ação redentora de um marginal local.

Ao cortar as cabeças dos caçadores de humanos, contudo, Lunga (Silvério Pereira), tingido de sangue dos pés à cabeça, exala a mesma excitação dos agressores, uma excitação que transborda da tela e contagia a assistência. Quem não gozou com aquela cena?

É aqui, contudo, que a fantasia encontra o limite da realidade.

No mundo real, Lunga também oprime o povo de Bacurau e pode até morrer tentando, mas não vai conseguir ganhar essa guerra contra os invasores. O certo mesmo é que “coisas ruins” vão continuar a acontecer para os dois “lados”. Hoje mesmo tive notícia de que o único policial morto deixou uma mãe doente, que dependia totalmente dele. No mundo real não existe essa dicotomia em preto e branco entre bandidos e mocinhos. O mundo real é e feito de tons de cinza, onde ninguém é totalmente bandido ou mocinho. No mundo real, essa dicotomia é apenas uma droga de alto efeito narcótico e viciante, sintetizada e vendida por gente que nem goza, mas lucra com ela, tal como o personagem Michael (Udo Kier), empresário que organiza e vende a viagem aos gringos.

No mundo real, enfim, precisamos de polícia. Mas de uma polícia que não precise ser necessariamente “militar”, e de uma política de segurança que não estimule o gozo com a morte (de quem quer que seja) e que seja capaz, portanto, de superar o paradigma da guerra.

REFERÊNCIAS:

Ferrell, Jeff; Hayward, Keith J.; Young, Jock. Cultural Criminology: An Invitation, 2a ed. Londres, SAGE Publications, 2015.

Junger, Sebastian. War. Londres: Fourth Estate, 2013.

[1] Junger, Sebastian. War. Londres: Fourth Estate, p. 144-145.

[2] Não por acaso, a guerra tem sido objeto de preocupação do pensamento criminológico contemporâneo, como registram Ferrel, Keith e Hayward (Ferrell, Jeff; Hayward, Keith J.; Young, Jock. Cultural Criminology: An Invitation, 2a ed. Londres: SAGE Publications, 2015, p. 124 e segs.)

Elmir Duclerc Ramalho Junior é Promotor de Justiça do MPBA, Doutor em Direito, Professor de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia e Membro do Coletivo Transforma MP