“As perdas qualitativas serão incomensuráveis”, diz Nota Pública do Transforma MP sobre fim dos conselhos participativos

O COLETIVO POR UM MINISTÉRIO PÚBLICO TRANSFORMADOR – TRANSFORMA MP, associação formada por membros do Ministério Público dos Estados e da União, pautando-se nos primados da democracia e da cidadania, em especial pelo que consta de sua Carta de Princípios quanto à “atuação do Ministério Público na defesa de sua missão constitucional”, que “deve se pautar não apenas por uma perspectiva jurídico-positiva, mas também contemplar a luta social, a cultura e as expressões populares existentes”, bem como os princípios de respeito absoluto e incondicional “aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito” e de “fortalecimento das instâncias de controle social e compromisso com os grupos/segmentos em situação de vulnerabilidade”, vem por meio da presente manifestar seu repúdio ao Decreto nº 9759[1], de 11 de abril de 2019, identificando inconstitucionalidades que ferem sua eficácia e devem ser questionadas junto ao Poder Judiciário, tanto por meio de controle concentrado como difuso de constitucionalidade.

O Decreto 9759/2019 não denominou as instâncias de participação da sociedade civil que serão extintas, utilizando-se de norma genérica, mas, segundo levantamento preliminar[2] realizado pela advogada, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e doutoranda em Ciência Política pela USP, Carla de Paiva Bezerra, já ultrapassam o expressivo número de 50, dentre as quais se destacam os seguintes: Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) e o Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC).

As perdas qualitativas serão incomensuráveis, dada a diversidade de participação dos mais diversos segmentos sociais, inclusive oriundos do ensino superior e das áreas de ciência e tecnologia, que vinham enriquecendo a implementação das políticas públicas, e, a partir do decreto, passariam a ser tratadas exclusivamente por servidores públicos e agentes políticos nem sempre com formação técnica adequada para os assuntos com os quais lidam.

Além deste aspecto, há que se ressaltar que tais instâncias constituem importantes mecanismos para garantir a transparência nas escolhas de prioridades governamentais e destinação de recursos públicos, de modo que sua extinção poderá comprometer ou inviabilizar o controle social e, indiretamente, contribuir para o aumento do desperdício de verba pública e da prática de atos de corrupção.

A Constituição Federal de 1988 expressa o pacto político do povo brasileiro, e em seu texto estão contidos os princípios e garantias fundamentais de uma sociedade democrática, cujo processo legislativo constituinte, com mecanismos de maioria qualificada e cláusulas pétreas, não pode ser ignorado por nenhum governante.

O Estado Democrático de Direito sustenta-se nos fundamentos expressos no artigo 1º da Constituição, cujo parágrafo único expressa: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente (grifo nosso).

Para compreensão da premissa constitucional relativa à origem do poder, importante entender que tal conquista civilizatória adveio dos séculos XVIII e XIX, pós Revoluções Industrial, Americana e Francesa, quando se edificaram os Estados Modernos, definiram-se as instituições públicas e sua separação da sociedade civil, já muito mais numerosa. Os governos monárquicos e aristocráticos foram substituídos por regimes republicanos e pelos ideais democráticos de liberdade e igualdade, e os direitos humanos passaram a ser percebidos como inerentes ao homem, devendo ser protegidos e respeitados pelos poderes constituídos.

A democracia moderna buscou sua fonte na antiga, mas modificou-se, e se por um lado a estreitou, na medida em que transferiu a decisão política aos representantes eleitos, por outro a ampliou a todos os membros da nação, com a introdução do sufrágio universal. No entanto, essa ampliação mostrou-se insuficiente no mundo contemporâneo, surgindo mecanismos de exercício da democracia direta.

É o caso dos conselhos de políticas públicas, que, após trinta anos da promulgação da Constituição Federal, instituíram-se como espaços privilegiados de exercício da democracia direta, permitindo o diálogo contínuo entre o Estado e a sociedade civil, e identificando os desafios e ações necessárias para a concretude aos objetivos fundamentais da República.

Ao extinguir por Decreto os colegiados, cujo conceito expresso no artigo 2º inclui os conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e qualquer outra denominação dada ao colegiado, o Presidente feriu de morte o parágrafo único do artigo 1º da Constituição, e inviabilizou o exercício da democracia direta.

Não bastasse, também é evidente a inconstitucionalidade do decreto motivada pelo princípio constitucional da vedação ao retrocesso. Pesquisadores, professores universitários, entidades da sociedade civil organizada e até mesmo o Conselho Nacional de Saúde[3] – não extinto porque criado pela Lei 8142/1990 e, portanto, não abrangido pelo Decreto 9759/2019 – têm apresentado os mais diversos argumentos fáticos relativos às diferentes áreas atingidas, evidenciando os prejuízos para a gestão pública democrática e os retrocessos que serão experimentados acaso as extinções efetivamente ocorram.

Nesse sentido, interessante consignar a opinião do sociólogo Pedro Demo, em sua obra “Charme da exclusão social” (1998), que ao tratar do tema que dá nome ao livro (exclusão social), comentando o modelo de seguridade social (os ativos pagam pelos inativos) e o universalista (oferta de serviços universais e gratuitos), ressalta que em ambos a participação política foi posta em segundo plano. “Nos dois casos, despreza-se a relação central da pobreza, que é a questão política, resumida no déficit de cidadania. Para que exista um mínimo de justiça social, não basta assistência estatal, nem mercado, mas é essencial a competência humana de intervenção na economia e no Estado.” (p. 11).

A Constituição Federal é a lei suprema do ordenamento jurídico, a maior de todas dentro da hierarquia das normas, não podendo ser contrariada nem desrespeitada, e regula de forma racional o relacionamento entre sociedade e Estado, não podendo um ato individual, ainda que perpetrado pelo Presidente da República, ser estruturalmente modificada.

Com um enfoque inédito no Brasil, a Constituição Federal em vigência exalta a participação da sociedade civil no processo político, seja por meio de instrumentos da democracia representativa (ou indireta), seja pela prática direta, por organismos especialmente criados para esta participação. Os conselhos de políticas públicas são espaços democráticos capazes de potencializar a participação da sociedade civil na gestão pública, ampliando a perspectiva clássica da democracia direta ateniense, onde só “homens livres” podiam se manifestar.

Na medida em que a Constituição atual garante o princípio da igualdade, permite a participação de todos e a livre manifestação do pensamento, o que significa um passo importante no caminho da inclusão social que deverá alcançar todos os setores da atividade social.

Por fim, conforme têm apontado os estudiosos do tema, a participação e o controle social no processo democratizante pós 1988 tiveram papel importante não só para a afirmação de direitos, redução das desigualdades e proteção de interesses nacionais estratégicos, mas também para a redução da incidência do grave problema da corrupção, e as áreas que foram menos permeáveis a tais mecanismos democráticos (especialmente infraestrutura e transportes) estiveram mais vulneráveis à sobreposição de interesses privados sobre os públicos e, assim, à prática de atos de corrupção.

Assim, o COLETIVO POR UM MINISTÉRIO PÚBLICO TRANSFORMADOR, comprometido com a ordem democrática e constitucional, com o irrestrito respeito aos Direitos Humanos e com o enfrentamento responsável e consequente do problema da corrupção, manifesta seu repúdio ao teor do Decreto 9759/2019 e, dadas as inconstitucionalidades supra identificadas, representa junto ao Ministério Público Federal para as providências cabíveis para salvaguarda dos princípios estabelecidos na República Federativa do Brasil.

Brasília, 24 de abril de 2019.

Coletivo por um Ministério Público Transformador

COLETIVO TRANSFORMA MP

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9759.htm

[2] Disponível para acesso na internet por meio do link https://bit.ly/2Gj0LAI

[3] http://www.susconecta.org.br/wp-content/uploads/2019/04/Reco012-Ao-MPF_CGU_TCU-Decreto-que-revogou-Conselhos-e-Controle-Social.pdf

Deixe um comentário