“Eu não entendo nada do que vocês estão falando”

Acesso à Justiça e o papel da Defensoria Pública: o Direito pelo Direito é opressor, algo que boa parte dos juristas está longe de compreender perfeitamente. Artigo do defensor público e filósofo João Tibau Campos.

Por João Tibau Campos, no Justificando.

Certo dia uma assistida da Defensoria Pública, indignada com a falta de resolução de seu caso, nervosa, com toda a razão, se dirigiu a mim criticamente: “eu não entendo nada o que vocês estão falando lá dentro”. Se referia à audiência judicial em que se discutia a existência prévia e a dissolução de sua união estável com certo sujeito, parte contrária em determinado processo judicial.

Aquela frase, por mais simples que fosse, me apanhou de surpresa. Primeiro, porque sempre me esforço para fazer com que o dito e o não dito nas audiências tornem-se minimamente inteligíveis às partes. Segundo, porque de fato o estado de nervos em que ela se encontrava era incomum. Seu comportamento inquieto fugia da realidade normalmente vista nas salas dos fóruns, qual seja, a de pessoas falando baixo, amedrontadas e assustadas.

A senhora estava de tal maneira indignada que a simplicidade de sua reclamação me levou imediatamente a reflexões que já vinha fazendo através de leituras e estudos que tenho tentado manter; questões mais profundas acerca do modelo de resolução de conflitos adotado como preferencial em nossa ordem social, a saber, a judicialização, bem como o posição da Defensoria Pública ante tal modelo.

Não estou aqui desqualificando a atuação individual do Defensor Público. Pelo contrário, a atuação individual é fundamental. Mas há que se perceber em cada caso individualizado sua projeção coletiva. De outro modo, todos os casos individuais que se repetem, dia a dia, continuarão a surgir, repetindo e reiterando a ordem vigente. Não há outra forma de se interpretar o artigo 134 da Constituição Federal [1].

Para tanto, é indispensável que dentro da própria Instituição sejam promovidos debates interdisciplinares, que permitam que as ciências realmente humanas tratem de humanizar o Direito. O Direito pelo Direito é opressor, algo que boa parte dos juristas está longe de compreender perfeitamente – talvez porque, no meio jurídico, até mesmo o melhor dos samaritanos é dado em certa medida ao exercício do poder pelo suposto saber.

No fim das contas, a solução dos conflitos e o combate à opressão não depende da ampla defesa, do contraditório ou do que quer que seja. Depende, sim, da visualização ampla de tudo o que histórica e materialmente nos trouxe até aqui, bem como da compreensão da luta de classes que continua a permear toda a sociedade, marcada por uma desigualdade social cruel e planejada.

Quanto mais jurídicos os conceitos jurídicos, mais vazios. Significantes sem significados, presos a uma eterna e cega verossimilhança interna bastante conveniente às discussões travadas no dialeto próprio de uma casta de excelências a que a Defensoria Pública muitas vezes quer se igualar. O jurídico mistifica o social e ilude. Há que se libertar disto. Há que se discutir mais profundamente qual o propósito da Defensoria Pública e, em sendo o mesmo identificado, se discutir as estratégias que efetivamente a levarão ao cumprimento deste.

Tudo isto, necessariamente, passa por reflexões filosóficas que permitam a produção de uma base teórica fundamental para que se estabeleça um senso crítico que interrompa os ciclos que se retroalimentam dentro dos debates jurídicos.

Apenas assim a Defensoria Pública adquirirá a maturidade institucional necessária para seu efetivo avanço e crescimento, para que, quem sabe, um dia possa cumprir seu destino de tornar-se desnecessária.

João Tibau Campos é Defensor Público do Estado da Bahia, bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense.


[1] CRFB, art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

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