Fui pra Cuba: relatos de um mês na ilha livre

Por Alberto Zorigian, em Medium.

Estive um mês em Cuba, agora, em abril de 2019, hospedado em casas de famílias cubanas, conversando muito e fazendo amizades com cubanos de diferentes idades, em 9 cidades de 9 diferentes províncias. Gostaria de fazer um sincero relato.

Trata-se disso mesmo, de um relato. Não tenho aqui qualquer pretensão acadêmico-científica, não apresento um artigo. Quero apenas dar vazão a um forte desejo de desabafar, de falar o que eu vi em um país tão cercado de mistificações, de escrever sobre o que eu ouvi diretamente da boca de dezenas de cubanos.

Antes dessa viagem, estudei muito sobre a história de Cuba, li livros e artigos, assim como notícias recentes. Estava afiado e não poupei perguntas sempre que possível.

Inicialmente, considero que Cuba é o único país do terceiro mundo ou mundo subdesenvolvido que pode, de fato, bater no peito e dizer que é independente, que não é uma neocolônia ou um estado títere de império algum.

Eles pagaram e pagam um preço altíssimo por essa liberdade, de todas as formas possíveis, e se orgulham muito disso.

Mesmo após 60 anos de um embargo financeiro e comercial assassino imposto e recentemente agravado pela maior potência mundial, 30 anos do fim da URSS e do comunismo europeu, mesmo sendo uma pequena ilha, sem nenhum recurso natural relevante, vi as conquistas da Revolução de pé, à custa de um esforço hercúleo de construção do possível.

São elas: saúde boa para todos (há médicos e hospitais mais do que suficientes em todas as cidades e povoados), mortalidade infantil baixíssima, segurança impressionante (praticamente inexistem crimes violentos e roubos, assim como comércio de drogas que não sejam rum, cerveja e tabaco), educação de qualidade para todos (todas as crianças e adolescentes nas escolas e universidades em todas as províncias), analfabetismo zero, população em situação de rua zero, acesso à cultura e lazer universal (cinemas, museus, teatros, shows, centros infantis etc. têm preços simbólicos para os nacionais ou são gratuitos) e igualdade racial real.

O cuidado com as crianças e com os jovens em geral é impressionante. Vai muito além dos famosos uniformes escolares, realmente muito bonitos. O carinho dos pais e das mães com os filhos é tocante, sem gritos, sem agressões, sem puxões. Crianças sempre impecavelmente vestidas, felizes, correndo livremente nas praças, indo a shows de música infantil, de palhaços, de mágicos, sorveterias. É algo realmente difícil de descrever.

Em uma breve contextualização histórica, não se pode ignorar que, após conquistar uma independência tardia e sangrenta da Espanha, Cuba foi invadida militarmente pelos EUA e transformada, de maneira humilhante, em neocolônia do nascente império yankee por meio da infame “emenda Platt”. Havia um regime de segregação racial igual ou pior ao do sul dos EUA ou da África do Sul. Extremas riqueza e miséria conviviam lado a lado em uma ilha então conhecida como “o bordel da América”, parque de diversões da máfia ítalo-americana. Para coroar, uma sucessão interminável de presidentes e ditadores, fantoches de Washington, caminhava em uma curva ascendente de entreguismo, torturas e assassinatos.

Havana tinha um bairro enorme, só de mansões, chamado Vedado. Por que Vedado? Porque era literalmente VEDADO para negros. Os antigos donos, claro, fugiram depois da Revolução, e suas casas foram então destinadas à moradia social. Hoje, nas mesmas mansões, com fachadas decadentes, vivem pessoas de todas as cores, pessoas que até 1959 viviam nas ruas ou em choças de palha.

Óbvio que nem tudo são flores. Eles são os primeiros a reconhecer que são um país pobre, do mundo subdesenvolvido e com muitas dificuldades, os primeiros a apontar seus próprios erros e responsabilidades. Ao contrário do que muitos pensam, eles nem de longe culpam EUA ou o embargo por tudo, a autocrítica interna não só existe como é pesada. Claro, a consciência do sufocamento exercido pelo bloqueio, pelas sabotagens e atentados da CIA, pela política imigratória vergonhosa dos EUA é muito forte, porém, na visão deles, esses fatos não absolvem os erros internos de eficiência e gestão.

Os principais problemas são aqueles que todos estão cansados de saber: dificuldades de abastecimento e escassez de alguns itens cotidianos (porém muito longe do caos que se imagina!), forte diminuição da renda e do poder de compra nos últimos anos e problemas de manutenção de edifícios e algumas áreas públicas (as tão divulgadas fachadas em ruínas). Problemas menos visíveis são a ineficiência de alguns setores produtivos e a pesada burocracia estatal.

A verdade é que o período brutal que se seguiu ao repentino colapso do bloco soviético, principalmente a primeira metade dos anos 90, impactou todos os setores da sociedade cubana, muitas das conquistas da Revolução foram afetadas gravemente e, apesar de uma forte recuperação desde então, nada voltou a ser exatamente como era nos anos 80.

Apesar disso, não travei contato com o suposto desejo emigratório massivo. Pelo contrário, com a exceção de uma pessoa que falou aberta e tranquilamente (sim, eles podem falar!) contra tudo e que defendia mudanças radicais em direção a uma espécie de neoliberalismo; todos, com mais ou menos críticas, querem a manutenção do sistema vigente e o seu aperfeiçoamento. Muitos afirmaram que, mesmo com todos as dificuldades, não imaginam melhor lugar no mundo para se viver, tamanha é a consciência daquilo que foi conquistado e do que realmente importa.

Claro que há emigração, assim como em todos os países do terceiro mundo. Algumas pessoas saem (sim, elas podem sair!) porque realmente optam pelo modo de vida capitalista, querem tentar acumular riquezas, desfrutar de mais bens e serviços etc., não porque estivessem em situação de miséria. É uma escolha de modo de vida que se faz. Outras se vão porque querem ter uma renda maior e ajudar os familiares que ficam, principalmente quando as crises econômicas são maiores. É sempre importante ter em mente, contudo, a asfixia que a economia do país sofre em razão do embargo e a histórica política imigratória dos EUA, em vigor até há pouco tempo, de oferecer cidadania estadounidense a todo cubano que chegasse ao país. É preciso também destacar o que me foi expressado em diversas oportunidades: as pessoas saem por razões unicamente econômicas, ninguém sai por ser perseguido politicamente, ainda que os EUA queiram classificar todo cubano que chega lá como “refugiado político”.

Não, sinto desapontar, mas Cuba não é uma ditadura. A primeira chave pra entender o sistema político deles é parar de achar que a nossa (pseudo?)democracia ocidental-liberal, de caráter eminentemente formal, em que vigora um pluripartidarismo estéril que só faz mascarar a realidade subjacente de captura do poder político pelo poder econômico, é a única “democracia” verdadeira, o único modelo aceitável, o “fim da história”. Nenhuma “democracia” foi perfeita até hoje e não há apenas um modelo de democracia. O sistema Cubano é único e não uma cópia da URSS, como muitos pensam.

O que chama a atenção na democracia cubana é a sua preocupação primordial com o aspecto material (em suma: não adianta representatividade formal sem educação, saúde e condições de vida dignas) e com a participação popular direta desde as decisões dos bairros, dos sindicatos, até a Assembleia Nacional.

Em Cuba há sufrágio universal, livre e secreto para todas as esferas legislativas: municipal, provincial e nacional. A periodicidade é quinquenal. O sistema deles não é baseado em partidos, qualquer cidadão pode se candidatar a qualquer cargo, sem nenhuma vinculação partidária, e a proximidade territorial/distrital dos eleitos com os eleitores é muito grande. O chefe do Poder Executivo é o Presidente do Conselho de Ministros, figura algo similar a um “primeiro-ministro” de um sistema parlamentarista, porém com mandato fixo: é sempre um deputado da Assembleia Nacional, eleito pela própria Assembleia, para um mandato de cinco anos.

O Partido Comunista de Cuba (PCC) está previsto expressamente na Constituição, com funções específicas, e não é um “partido político eleitoral” no sentido que temos aqui no Brasil. Ele não pode postular nas eleições e nenhuma pessoa precisa ser filiada a ele para se candidatar a qualquer cargo eletivo. Poderia ser descrito como uma autarquia, um think tank estatal: não tem poder executivo ou legislativo algum, não tem poder sobre a Assembleia Nacional ou sobre o Presidente do Conselho de Ministros, suas funções primordiais são, nos exatos termos da Constituição, “organizar e orientar os esforços comuns na construção do socialismo e o avanço em direção à sociedade comunista. Trabalha para preservar e fortalecer a unidade patriótica dos cubanos e para desenvolver valores éticos, morais e cívicos”. Ou seja, é um órgão que permanentemente se debruça sobre a realidade cubana e propõe as diretrizes gerais para evolução do socialismo cubano, desenvolvendo também atividades permanentes de conscientização e mobilização da população. O seu caráter democrático e de permanente vinculação com o povo também é expresso no texto constitucional.

Muitos cubanos costumam dizer que antes da Revolução havia inúmeros partidos e nenhuma democracia, agora eles têm apenas um partido e muita democracia. Uma vez, quando indagado sobre isso em uma entrevista, Raúl fez uma brincadeira com o seguinte conteúdo aproximado: “os EUA gostam de fingir que têm dois partidos, nós podemos fazer isso também, Fidel é um partido e eu sou o outro”.

Há inúmeros mecanismos de democracia direta e de transparência, o exemplo maior é a nova constituição, que entrou em vigor neste ano. O projeto foi exaustivamente discutido durante dois anos, não só na Assembleia Nacional, mas nos comitês dos bairros. Milhares de propostas de emendas foram levadas a votação. Finalmente, a nova constituição foi aprovada em referendo por 84% da população.

O atual Presidente do Conselho de Ministros é Miguel Diaz-Canel. Não é nenhum líder histórico do Revolução e não tem nenhuma ligação com a família Castro. É um quadro político de longa e exitosa carreira, engenheiro de formação, foi presidente da província de Villa Clara nos piores anos do período especial e a fez avançar mesmo assim, foi reitor da Universidade de Havana. Enfim, foi eleito pela Assembleia Nacional.

Curiosidade: você sabia que não existe nenhuma avenida com o nome do Fidel e nenhuma estátua dele no país inteiro? Ele pediu que essas coisas não fossem feitas após a sua morte. Até há pouco tempo, os cubanos nem sabiam quem era a esposa dele e ainda hoje muito pouco se sabe sobre a família Castro como um todo, tamanha a discrição. Quanto personalismo, não?

Aliás, podem espernear, podem inventar quantas coisas quiserem, o fato é que Fidel foi um líder genial, idealista, incorruptível, coerente ao extremo. Com seus erros e acertos, sempre foi fiel ao povo e aos seus ideais. Foi e ainda é muito amado pelo povo cubano, nunca temido, nunca cegamente idolatrado. Da mesma forma que nutrem um respeito e uma admiração imensas por ele, os cubanos têm plena clareza dos seus erros e livremente formulam críticas. Nada, absolutamente nada a ver com a imagem ditatorial, autoritária e personalista que se tenta construir em torno dele. O mesmo se pode dizer em relação ao Che, um argentino que recebeu a cidadania cubana e é admirado de uma forma indescritível. Conheci um veterano da Revolução e da batalha da Baía dos Porcos, um senhor de 80 anos que conheceu pessoalmente Fidel e Che, no dia-a-dia. Não há como não se emocionar ao vê-lo falar.

Desfazendo mitos: não só há smartphones como eles são muito difundidos, em todas as faixas etárias. Eles acessam diariamente a internet (a forma mais comum é usar o wi-fi nas praças, quase todas têm, mas progressivamente está se expandindo o serviço para as casas e para o 4G). TVs de tela plana também são difundidas. Há caixas eletrônicos, normalmente. Há carros antigos, em sua maioria soviéticos, e carros novos de origem europeia e chinesa. Aqueles famosos carros americanos rabo-de-peixe dos anos 50 são em sua quase totalidade destinados ao taxi turístico. O que de fato ainda é muito restrito é a possibilidade de usar cartões de crédito e débito em lojas e restaurantes em razão do embargo (as principais bandeiras têm sede nos EUA). Eles estão conseguindo driblar isso aos poucos, mas ainda é uma economia essencialmente de dinheiro vivo.

Conversei com médicos e engenheiros assim como com familiares deles, que participaram de missões no Brasil, na África e na América Central. Eles sentem um orgulho enorme desse trabalho e ficaram muito tristes com o que houve no Brasil. É preciso entender que em Cuba não existe saúde privada, todos os médicos são servidores públicos. Logo, quando eles se inscrevem e são selecionados para missões em outros países, são enviados na condição de funcionários de um estado estrangeiro. Eles são enviados por tempo determinado e podem pedir a prorrogação de seu período de atuação enquanto durar a missão cubana. Estão sempre indo e voltando, mudando de um país pro outro etc. Por isso, não faz sentido que as famílias os acompanhem, mas podem fazê-lo, só não terão a viagem custeada pelo Estado. Quando um médico se recusa a regressar após o fim do seu período ou da missão, sofre as sanções normais de um funcionário público que abandona o cargo. Esse negócio de proibição de voltar pra Cuba, de prisão, de retaliação às famílias é absolutamente falso. Assim como é falso que eles não compreendam a forma de pagamento. Lembra que Cuba é uma ilha sem nenhum recurso natural? Então, eles têm recursos humanos de sobra. Eles exportam serviços médicos, é uma das principais formas de obtenção de divisas para financiar justamente a educação (inclusive as faculdades de medicina) e a saúde do país, ambas integralmente públicas e gratuitas. É preciso entender que o ensino deles funciona sob uma lógica de retribuição. A sociedade os forma médicos e eles ajudam os outros a se formarem. Eles não saem da universidade pública sem nenhum tipo de compromisso social, enquanto o povo continua pagando ICMS, como aqui. Trata-se de uma forma de estruturar o sistema de ensino a partir da função social da educação e da solidariedade entre a academia e a sociedade. Justamente por isso, é tão difícil para nós, inculcados com uma visão absolutamente egoística dos fins da formação educacional e do exercício das profissões ditas liberais, entendermos o funcionamento do sistema deles.

Não, o Estado Cubano não é homofóbico. O povo cubano é que, infelizmente, ainda é muito machista e patriarcal. Historicamente, os esforços se concentraram na superação do racismo e na inserção da mulher no mercado de trabalho, apenas nos últimos anos começaram campanhas de combate à homofobia e ao machismo em si. Não há crimes de ódio e muito poucos de violência doméstica, mas a aceitação do casamento gay, por exemplo, encontra enorme resistência em fortes setores católicos da população (não, ninguém foi obrigado a virar ateu).

Eles adoram o Brasil. Amam as novelas e a música brasileiras. Sempre dizem que acham o Brasil um país lindo. Assim como nós, tem no arroz com feijão a base da sua culinária. Santería e Candomblé são a mesma religião. Usam camisa da seleção brasileira cotidianamente e torcem por nós nas copas. Ficaram muito tristes e perplexos com a ascensão da extrema direita no Brasil, sabem bem como e por quem ela foi eleita, estão torcendo pela liberdade do Lula. Entristecem-se ao saber o que se fala de Cuba e dos cubanos nos grandes oligopólios de mídia brasileiros, mentiras quase sempre acriticamente assimiladas pela população, infelizmente. Entretanto, não se surpreendem de todo, já estão bem acostumados depois de 60 anos de difamações em todo o mundo.

Aliás, uma coisa que admirei muito neles é uma impressionante capacidade de não dar a mínima bola pra torcida, de não perder tempo remoendo rancor de ninguém, nem dos EUA, e sempre olhar pragmaticamente para a frente, com muita convicção dos princípios e palavras-chave que se leem em toda parte (revolução, unidade, compromisso, vitória, socialismo, pátria, liberdade, amor, solidariedade, força, construção, possibilidade, produção, desenvolvimento, internacionalismo). Eles se importam muito pouco com o que pensam deles, suas energias estão direcionadas para seus objetivos e problemas concretos.

A visão que eles têm da relação com os EUA, por exemplo, é bem objetiva e nada passional: “trata-se de um bloqueio político, a culpa é de certos políticos americanos e de um pequeno grupo (muito influente) de cubanos emigrados nos primeiros anos da Revolução. O povo americano, cuja maioria é contra o embargo, diga-se de passagem, não tem nada a ver com isso. Não temos por que odiá-los.” Tanto assim que, pasmem, vi muitas pessoas usando, livremente, roupas com estampa de bandeira dos EUA, enviadas por parentes que moram lá, assim como camisas da Venezuela, do Brasil, da Argentina, da Colômbia e de muitos outros países.

Em um mês em Cuba, aprendi mais do que em 16 anos de educação formal. Aprendi o que é de fato priorizar aquilo que deve ser prioridade, a distinguir claramente o que é pobreza do que é miséria, o que é trabalho digno e o que é exploração. O que é ter uma convicção inabalável. É um país que te emociona e te choca, te encanta e te quebra. Te faz pensar e refletir a todo momento. Incomoda. Tapa na cara e afago ao mesmo tempo. Não é possível ficar indiferente, a alienação não está à disposição.

Cuba não é um paraíso, muito menos o inferno na terra. É um país independente e soberano, absolutamente intransigente nestes pontos, como poucos aliás, que, com todas as suas imensas dificuldades, com erros e acertos, direciona obstinadamente a integralidade dos seus esforços para que todos tenham condições dignas e equivalentes de vida. Uma ilha tão pequena e tão atacada, cujo exemplo de luta é tão temido e tão difamado. Um país que se orgulha genuinamente, e com razão, de sua história e que está disposto a tudo para não perder o que a tanto custo foi conquistado.

Alberto Zorigian Gonçalves de Souza é defensor público no estado de São Paulo.

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