Garantismo Integral: a “teoria” que só existe no Brasil

Compartilhamos artigo de Ana Cláudia Pinho (integrante do Transforma MP) e Alfredo Copetti Neto, publicado originalmente no Justificando em 2017. Vale a pena ler.

É incrível como tudo por aqui é deturpado conceitualmente. Em verdade, não seria demasiado afirmar que, pelas bandas de cá, muito pouco (ou quase nada) se trabalha seriamente um conceito. É como se eles realmente não existissem, não possuíssem um DNA, uma identidade. É como se pudéssemos, nós mesmos, atribuir qualquer sentido para um conceito, um instituto e, até – pasmem – uma teoria! Porém, não há conceito sem coisa, da mesma forma que não há coisa sem história, sem contexto, sem uma tradição, uma construção. Os conceitos não são inventados! Eles hão de possuir uma genealogia. Em suma: o que permite alguém dizer algo sobre algo?

A literatura não responde taxativamente, mas nos auxilia no percurso. Recordamo-nos do livro “O livreiro de Cabul”, escrito pela jornalista norueguesa Asne Seierstad, que tece profundas considerações acerca do ambiente familiar de Sultan Khan, o livreiro de Cabul, homem culto que difundia entre seus conterrâneos as possibilidades – e também as mazelas – da liberdade, por meio da literatura.

Encanto e surpresa são os sentimentos aflorados na obra de Asne. Ela respeita e admira o livreiro, por sua coragem em promover algo novo, não corriqueiro e peculiar, aos afegãos. Entretanto, a intimidade produzida pelo convívio diário com a família de seu anfitrião fez com que Asne deparasse com uma cultura arraigada a princípios originários do Oriente Médio, com a subserviência das mulheres em relação aos homens em inúmeros aspectos da vida quotidiana. Obviamente, para a realidade em que ela estava acostumada, aquelas circunstâncias pareceram contraditórias, aparentemente paradoxais: o proprietário da livraria mais importante de Cabul não poderia submeter sua família a regras heterônomas.

Sultan Kahn, nome fictício dado a Shah Muhammad Rais, recebe o diário publicado de Asne e, logo após, escreve a obra “Eu sou o Livreiro de Cabul”. Neste livro resposta, Shah estabelece as diretrizes, apara as arestas das asserções colocadas por Asne, contextualizando-as. Sem nenhuma pretensão de imposição moral escancarada, ele desenvolve argumentos que reestruturam, em alguma medida, os alicerces da vida médio-oriental. Somente a partir deles pode-se dizer algo verdadeiramente virtuoso. Shah é um livreiro, muçulmano, corriqueiramente perseguido pelo Regime Talibã implantado no país. Ele hospeda uma ocidental em sua casa, concede-lhe abertura compreensiva a partir da convivência irrestrita com todos. Ocorre que, diante das incomensuráveis novidades, Asne deixa de lado o contexto no qual está inserida, o de uma família muçulmana…

Sem entrar no mérito sobre as posições ideológicas de um (livreiro) e de outra (autora), fato é que – a partir de pré-conceitos inautênticos (Gadamer), não colocados à prova, e de uma posição de fala a princípio refratária a novos horizontes – é praticamente impossível dar-se a compreensão.

O mesmo se dá quando, ignorando-se um conceito/coisa, insiste-se em falar sobre ele, a partir de uma leitura idiossincrática, que nada tem como a construção histórica que lhe subjaz.

Falemos, pois, de garantismo. Do “integral” e do de Luigi Ferrajoli.

O Garantismo Jurídico não é um modelo de direito pautado em heróis, muito menos acredita na suposta e tentadora bondade dos bons. Não é uma religião, tampouco uma profissão de fé. Não é a receita para a cura dos males que se abateram sobre a sociedade brasileira do século XXI, assim como – de outro lado – não chegou para implementar o caos punitivista, ou a impunidade.

Ao leitor que nos acompanhou até aqui possivelmente surja a pergunta: por que, mais uma vez, retornar ao ponto de partida? Não podemos avançar, na medida quem que já compreendemos este prisma inicial? Nossa resposta é negativa. Não podemos avançar e, portanto, temos de retornar aos fundamentos, pois, ainda, infelizmente, eles são mal compreendidos e seus reflexos são danosos à proposta.

Para entendermos o quanto vivemos uma crise de fundamentos, vejamos o seguinte: se no início dos anos noventa no Brasil, e na maioria dos países latino-americanos, o Garantismo Jurídico foi exposto à condição de uma teoria que pretendia, grosso modo, proteger criminosos e preservar a impunidade (sic.) (crise de fundamento, por não se compreender que o garantismo não propõe, no campo penal, um modelo abolicionista, mas, todo o contrário, legitima o poder punitivo, por meio de um utilitarismo penal reformado); nos dias atuais, a partir da ideia de um Garantismo Integral[2], o modelo passa a fazer uma crítica a um tal Garantismo Hiperbólico Molecular, nome dado àquela primeira ideia, segundo a qual há uma deficitária leitura do modelo proposto por Luigi Ferrajoli, na medida em que se estaria privilegiando a proteção dos indivíduos criminosos, sem levar em consideração o papel de proteção dos interesses da sociedade em geral, bloqueando medidas mais enérgicas do Estado em nome dos direitos da coletividade (outra crise de fundamento, por ignorar que o garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli tem sentido único: proteção do mais débil. Ou seja, trabalha sempre, no campo penal, com a construção de vínculos de constrangimento do poder).

Confessamos que tentamos buscar outra forma de dizer o que segue, mas não encontramos diferente resposta senão a de que nem o novo Garantismo Integral, nem o assim chamado modelo contraposto Garantismo Hiperbólico Molecular podem ser chamados de Garantismo Jurídico, ao menos não no molde criado por Luigi Ferrajoli, por alguns pressupostos estruturais do Garantismo Jurídico que nos parecem simples – jamais simplórios –, dentre os quais:

a) o conceito segundo o qual os direitos sociais, comparados aos direitos de liberdade, não passam de uma titularidade individual para uma titularidade coletiva, na medida em que o que muda não é a titularidade do direito, mas a expectativa do indivíduo titular, de uma não lesão, no direito de liberdade, para uma prestação, no direito social;

b) a (teoria da) interpretação, no viés garantista de Ferrajoli é metateórica, e isso quer dizer que os princípios elencados pelo Garantismo Integral, como os Princípios da Proteção Deficiente e da Proibição em Excesso não podem servir como base para a criação jurídico-normativa pelo Poder Judiciário, porque I – rompem com a Separação de Poderes e II – porque resvala na falácia de Hume, confundindo o dever ser normativo do direito com o ser efetivo da aplicação do direito;

c) o Garantismo Positivo não está vinculado à ideia de interesse da sociedade de forma abstrata, mas sim à ideia segundo a qual o Estado tem deveres não somente de não-lesão, mas de prestação, a fim de cumprir as garantias positivas determinadas pelos direitos individuais sociais.

Portanto, devemos levar em consideração a máxima do Garantismo Jurídico como a outra face do constitucionalismo, e não como um modelo integral, às vezes chamados de ideal. Se o constitucionalismo é compreendido como limites jurídicos a poderes, a sua outra face é a obrigação de tais limites serem estipulados normativamente por meio das chamadas garantias, que não tutelam nem poderes, nem interesses abstratos, mas única e exclusivamente direitos fundamentais  dos indivíduos em carne e osso: aí estão as garantias do garantismo, jamais plenamente realizáveis, por conta das lacunas e antinomias que não deveriam, mas fazem parte do direito.

Nesses termos, às vezes é preciso dizer o óbvio. E depois de quase trinta anos da promulgação da Constituição Brasileira, nos parece necessário voltar às discussões que naquela época foram travadas acerca do Garantismo Jurídico, porque, desde então, embora tivéssemos acreditado que a comunidade jurídica havia compreendido a síntese deste modelo jurídico, ele permanece deturpado conceitualmente.

Mas isso não é de hoje, e não ocorre somente com o Garantismo Jurídico, desde Hans Kelsen, para ficar no positivismo normativista, conseguiu-se dizer, afirmar e sustentar por anos a fio o que o autor não disse. Não há nenhuma linha do clássico Teoria Pura do Direito, por exemplo, em que o autor afirma a sua suposta pretensão de purificar o direito (sic.). E assim ocorreu com as norme programmatiche de Vezio Crisafulli, que foram transformadas em normas não auto-aplicáveis; com a teoria da argumentação de Robert Alexy, que está servindo para sustentar escolhas morais subjetivas nas decisões judiciais; como a teoria do domínio do fato, de Claus Roxin, que serviu como álibi à pretensão punitiva(ista) de crimes econômicos, dentre outras.

O Garantismo Jurídico, tal qual as inúmeras teorias lidas à brasileira, não conseguiu fugir da deturpação. Aqui, em especial, uma preocupação a mais nos ocorre: um país dominado – desde a mais tenra idade – pela cultura punitivista e pelo modelo penal de encarceramento precisaria, a toda urgência, socorrer-se de uma contra-ordem. É imperioso que se compreenda, em definitivo, que – mesmo sem qualquer pretensão de universalidade (como já dito, o Garantismo se realiza – quando se realiza – sempre parcialmente) – a teoria de Luigi Ferrajoli é de tal sorte refinada e sofisticada que assegura mecanismos jurídicos legítimos (constitucionais) e democráticos para a contenção do poder e a realização (ainda que deficiente) dos direitos fundamentais (individuais, frisamos). Mas, isso só será possível se a teoria for bem compreendida, desde sua base e formatação histórica (Iluminismo).

Por isso, repetimos:  não há conceito sem coisa, como não há coisa sem história, sem contexto; e devemos lembrar que a história do direito moderno, no fim da contas, é a história da luta contra o poder, seja ele público ou privado, em que as garantias, pois não há garantismo sem garantias jurídicas a direitos exclusivamente individuais, nos últimos trinta anos, muito em virtude da vasta construção analítica e conceitual de Luigi Ferrajoli, feita a partir do paradigma atual do Estado Constitucional de Direito, assumem um papel crucial.

Se assim  não for, seguiremos comendo carne de panela feito churrasco e tomando açaí com granola, na ilusão da busca por um novo sabor. A “gourmetização” se vende mais caro e, não raro, até chega a impressionar. No entanto, o mais caro não implica o melhor… a cozinha de raiz, para onde muitos (bons) chefs estão retornando é o caminho certo, por uma razão muito óbvia: é autêntica e vai aos fundamentos…

Alfredo Copetti Neto é Doutor em Direito pela Università di Roma. Mestre em Direito pela Unisinos. Tem Estágio Pós-Doutoral CNPq/Unisinos. Professor PPG/Unijuí e Unioeste. Advogado OAB/RS. 

Ana Cláudia Pinho é Doutora em Direito (UFPA), Mestre em Direito (UFPA) e Professora de Direito Penal da UFPA (graduação e PPGD). Promotora de Justiça/PA. Integrante do Transforma MP, Ana Cláudia também é autora da página Direito Complicado, no facebook.


[1]Ferrajoli, Luigi. Diritto e Ragione. Teoria del Garantismo Penale. Roma-Bari: Laterza, 2004, p. 891 e segs.

[2] Garantismo Penal Integral – questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. 2a edição. Salvador: editora JusPodivum, 2013. CALABRICH, Bruno; FISCER , Douglas e PELELLA, Eduardo (org.)

Foto: © Victor Silva | francabresil.blogspot

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