Não podemos compactuar com a indiferença

Por Gustavo Roberto Costa, no Viomundo.

No texto “Ódio aos indiferentes”1, Antonio Gramsci asseverou que “viver é tomar partido, é ser partidário”. “Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário”. Para o pensador, “a indiferença é o peso morto da história”, “é parasitismo”. “A indiferença opera potentemente na história”, “opera passivamente, mas opera”. Na quadra histórica atual, a indiferença é, talvez, uma de nossas piores inimigas.

Quando estava nos bancos acadêmicos, tinha a sincera impressão de que o direito havia alcançado o patamar máximo de sua evolução. Tínhamos uma Constituição Federal que declarava linda e ludicamente uma série de direitos e garantias fundamentais. Havia ali consagrados os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à fraternidade e tantos outros.

Com a descoberta de que havia também declarações e pactos internacionais voltados a garantir direitos humanos, aquela impressão tornou-se certeza. Bastava tão somente que houvesse operadores do direito engajados na efetiva implementação e adjudicação desses direitos. Veio daí a vontade de integrar uma carreira jurídica pública, o que me parecia fascinante (poder participar da nobre tarefa de distribuir direitos a quem deles necessitasse).

Ao assumir o cargo e dar de cara com a realidade, a decepção é inescapável. Na prática, tem-se a constatação de que tudo aquilo que aprendemos na faculdade de nada vale. Na vida real, o direito apresenta-se como um instrumento que institui e garante uma ordem de desigualdade e de opressão – pesem embora suas lindas declarações e ótimas intenções.

Na justiça criminal, o cenário é desolador. Réus presos preventivamente sem fundamentação legal, prisões lotadas, penas desproporcionais, violação ao direito de defesa. Réus negros, pardos, desnutridos, magros, com fome, com sede, doentes, abandonados. Uma perseguição implacável aos pobres (são mais de 99% dos presos sem medo de errar). Uma “guerra às drogas” que é responsável pela violação de todos os direitos humanos possíveis e imagináveis.

E não é só: quando se tenta fazer valer o ordenamento jurídico, passa-se a ser malvisto nas instituições. Sofre-se uma pressão enorme (às vezes velada, às vezes explícita, via redes sociais), a fim de que seja eliminada qualquer chance do surgimento de vozes dissonantes.

A justiça criminal, assim como nosso sistema prisional, já pode ser considerada um “estado de coisas inconstitucional”. As declarações de direitos não valem. Os pactos internacionais não valem. Os direitos humanos não valem. O princípio do devido processo legal não vale.

Tudo isso já era de conhecimento dos operadores do direito. Todavia, nos últimos anos, até mesmo o verniz democrático e legalista das instituições jurídicas cedeu, dando lugar a um puro e indisfarçável estado de exceção.

Promoveram-se atos processuais ilegais e midiáticos (conduções coercitivas, prisões preventivas, divulgação de conversas privadas e de delações suspeitas), visando a destruir reputações e intervir no processo político nacional. Promoveu-se um golpe de estado contra a presidente eleita sem crime de responsabilidade. Moveu-se um processo penal contra o principal líder político do país – em que lhe foram negados os mais básicos direitos individuais2 – visando a retirá-lo da corrida eleitoral e do debate público.

Manobrou-se para que subisse ao poder um projeto anti-país, anti-povo, antinacional. Um projeto que nunca escondeu – e de incoerente e mentiroso nunca ninguém vai poder acusá-lo – sua intenção de matar, de metralhar, de prender, de segregar, de asilar e de perseguir. E ao assumir, passou a implantar a agenda prometida.

O Estado de Direito corre hoje sério risco. Risco de se fazer ruir um sistema de garantia de direitos que, embora não implementados, estavam ao menos formalmente previstos. Corremos o risco de regredir anos, talvez décadas, talvez séculos. Temos o dever histórico de lutar contra esse retrocesso.

Nesse diapasão, preocupa-me sobremaneira a notícia da formação de uma “frente ampla pela democracia”3, com a junção de diversos partidos e setores da sociedade (de variados espectros ideológicos) contra o governo federal e o projeto que ele representa. Preocupa-me a formação dessa frente com a presença de pessoas que participaram ativamente do golpe de 2016 e apoiaram expressamente a eleição desse projeto. Preocupa-me também a possível desistência de pautas caras como a defesa da previdência e da soberania nacional.

Afora isso, a legitimidade de frentes democráticas deve ser buscada nas ruas, nos movimentos sociais (como MST, MTST, Centrais de Favelas, grupos indígenas e negros), nos sindicatos, nas universidades, nos institutos de pesquisa etc.

Uma “frente ampla” que não denuncie o estado de exceção em que vivemos (e todos os seus ataques à ordem jurídica) não pode ser chamada de “democrática”. É preciso que aqueles que exigem “autocrítica” também façam a sua. Façam sua autocrítica e assumam que criaram um monstro que agora também os está devorando. Uma frente ampla que possibilite um novo golpe de estado daqui a alguns anos ou décadas não parece interessar.

A ABJD (cujos companheiros saúdo efusivamente), na vanguarda da defesa incessante da democracia e do estado de direito, tem o dever de manter as pautas jurídicas de interesse do povo em evidência, para que jamais sejam deixadas de lado.

Não se pode compactuar com a indiferença.

Gustavo Roberto Costa – Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.


2 Sobre as variadas violações à lei cometidas no caso Lula, especialmente em relação às regras de competência, o cerceamento de defesa, a condenação sem provas, os atos pré-processuais ilegais e até mesmo a interpretação errônea da jurisprudência do STF, vide: Comentários a uma sentença anunciada: o Processo Lula/Carol Proner et al. (orgs.). – Bauru: Canal 6, 2017. Projeto editorial práxis; e Comentários a um acórdão anunciado: o processo Lula no TRF 4/ Carol Proner et al. – 1.ed. – São Paulo: Outras expressões, 2018..

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