Sindicalismo e a utopia de uma sociedade global

 

Desregulamentação, flexibilização, privatização, desindustrialização, informalidade, terceirização, subemprego e desemprego são a tônica contemporânea. A exploração do trabalho humano foi intensificada e generalizada.

Por Vanessa Patriota da Fonseca no GGN 

Nas sociedades capitalistas, a  esfera financeira tem comandado a repartição social da riqueza mundialmente produzida. Ela atua na organização da esfera produtiva buscando o aumento do mais-valor e o desenvolvimento tecnológico capaz de diminuir os postos de trabalho e ampliar o exército de reserva disponível. Impõe pressão negativa sobre os salários e aumento de produtividade em busca de novas formas de rentabilidade. A acumulação financeira, portanto, modifica a relação capital-trabalho. E os próprios trabalhadores aposentados, beneficiários de fundos de pensão, que seguem a lógica de acionistas, passam a pressionar, sem que o saibam, pelo aumento da exploração dos antigos companheiros em prol de maior rentabilidade.

O crescimento da produtividade no trabalho reflete o anseio do capital para encurtar a distância entre o tempo de trabalho total e o tempo de trabalho da produção, como insistiu Marx em O Capital. Por isso, o desejo capitalista de acabar com o tempo à disposição do trabalhador como medida da jornada de trabalho e remunerar apenas o tempo efetivamente laborado. Se o capital não pode igualar tempo de trabalho a tempo de produção, suprime-se a jornada de trabalho. Se os contratos de longo prazo e o investimento em qualificação profissional não interessam aos grandes acionistas que buscam retornos financeiros urgentes, criam-se contratos precários, temporários, de curta duração. A flexibilização trabalhista e a subcontratação em nível internacional de força de trabalho garantem, portanto, o alto lucro dos acionistas. Esse movimento levou a uma diminuição do operariado industrial estável de base taylorista-fordista e ao surgimento de novas formas de trabalhos precários.

Desregulamentação, flexibilização, privatização, desindustrialização, informalidade, terceirização, subemprego e desemprego são a tônica contemporânea. A exploração do trabalho humano foi intensificada e generalizada. Alternativas a esta crise civilizatória precisam ser construídas pelos vários atores sociais, sendo a atuação dos novos movimentos sociais extremamente importante nesse contexto – movimentos estes que estão agindo de forma mais horizontalizada e globalizada e que têm muito a ensinar ao sindicalismo operário.

No entanto, há uma forte crise envolvendo o sindicalismo contemporâneo provocada pelo crowdsourcing, pela informalidade, pela terceirização etc., que fragmentaram as categorias profissionais e pulverizaram os locais de trabalho. Se à época do surgimento do Direito do Trabalho os trabalhadores estavam concentrados nos espaços fabris, laborando lado-a-lado em uma linha de produção, o que permitiu o estreitamento dos laços de sociabilidade, a identificação de interesses comuns, o surgimento de demandas coletivas e a organização sindical, no crowdsourcing esses trabalhadores estão geograficamente dispersos e a noção de categoria profissional já não dá conta de promover a identidade entre eles.

Hoje defendemos o reconhecimento dos vínculos de emprego de uma legião de trabalhadores uberizados; o reconhecimento de uma relação que é de exploração, pois pior do que ser um trabalhador subordinado é ser um trabalhador subordinado sem o vínculo de emprego reconhecido. E defendemos o reconhecimento de vínculos de emprego porque as empresas buscam escondê-lo, ocultando, inclusive, a própria relação de exploração. Trabalhador é “transformado” em parceiro, colaborador, microempreendedor. Com isso, camuflam-se as lutas de classes. Estão todos do mesmo lado! A luta passa a ser entre os trabalhadores; uma luta concorrencial pelo direito de ser explorado.

Enfrentar essa exploração, portanto, é enfrentar o sistema. Não há convivência possível entre democracia e capitalismo em função da lógica deste de acumulação e concentração de riqueza. A exploração, a mais-valia, é imanente ao modo de produção capitalista; um processo em que a desigualdade entre os que compram a força de trabalho e os que a vendem pode ser minorada, mas não superada; um processo, o que é mais grave, forjado na existência de um exército de reserva desempregado sempre disponível à exploração; um processo alienante quer em função da transformação do homem e da mulher trabalhadores em máquinas, quer em função da captura de sua subjetividade.

É tempo de restagar um sindicalismo autêntico que busque a superação desse modelo posto. Nesse sentido, a irrupção de diversos movimentos sociais contra-hegemônicos por todo o mundo, tais como o Indignados e o Occupy Wall Street, ou de movimentos paredistas de âmbito global realizados por entregadores de aplicativos em 2020 e 2021, entre tantos outros, pode ser uma luz para esse resgate.

Nesse contexto, questões relevantes se apresentam e nos levam a pensar sobre os mecanismos de mobilização dos trabalhadores em âmbito global; sobre a criação de instâncias supranacionais de interlocução entre as organizações sindicais, as empresas transnacionais e os Estados-Nações; sobre a construção de instâncias supranacionais voltadas à articulação, resolução de conflitos e formação de regras jurídicas; sobre a atuação das organizações sindicais no espaço e no tempo; sobre novas formas de diálogo social, de negociação, de realização de assembleias sindicais, que podem ocorrer nas praças, nas ruas, por meio de aplicativos; sobre a ampla liberdade de filiação, de representação e de definição dos interesses pelos quais se deve lutar; sobre o enfrentamento ao sistema capitalista que se forjou e se desenvolveu com a subjugação de negros, mulheres e crianças e que se sustenta na exploração do trabalho humano; sobre a inexistência de uma relação histórica-natural entre capital e trabalho, como a burguesia capitalista quer fazer transparecer; sobre a luta de caráter político-revolucionário que leve à emancipação social; sobre levar a sério a utopia de uma sociedade global.

A crise sanitária gerada pela pandemia da COVID-19 revelou a centralidade do trabalho; a centralidade do Estado; a falência das políticas neoliberais; a extrema desigualdade social, racial e de gênero; a interconexão entre meio ambiente, políticas econômicas e sociais. E pesquisas em ciências sociais indicam que outras crises virão. Vivemos na sociedade de risco. A produção social de riqueza anda de mãos dadas com a produção social de riscos. Para o acúmulo de riquezas não há barreiras. Não importa se ele ameaça a vida de plantas, animais e seres humanos. E as ameaças são supranacionais, globais.

Os riscos não se vinculam ao lugar onde foram gerados (a indústria, por exemplo), ameaçando a vida do planeta: substâncias tóxicas são produzidas – e, nesse aspecto, desponta o Governo Bolsonaro com a aprovação, à rédea solta, de novos agrotóxicos[1] —; o consumo de energia não é sustentável, com os combustíveis fósseis impondo altos níveis de poluição; florestas são destruídas e o desmatamento já não causa apenas o desaparecimento de diversas espécies de animais, mas põe em xeque a vida no planeta; rios são poluídos ou mortos; surgem novas doenças que se alastram mundialmente com rapidez; a ameaça nuclear é uma realidade; alimentação já não implica saúde e a fome mata; a agricultura intensiva industrial, subsidiada pelos Estados-Nações, ameaça a fertilidade das lavouras destruindo a base natural da própria produção agrícola; indústrias de risco são transferidas para países do “Terceiro Mundo”, com mão de obra barata, mas os riscos gerados não se prendem aos limites de suas fronteiras.

A supranacionalidade dos riscos indica que as ameaças não podem ser enfrentadas no restrito nível nacional. Indica, ainda, que as lutas meramente reivindicatórias não atendem aos anseios de um mundo do trabalho globalizado, cujas ameaças aos trabalhadores e à sociedade em geral não se restringem aos muros de fábricas. Importam os salários, os intervalos para repouso, a jornada de trabalho, os equipamentos de proteção coletiva e individual, mas importam, sobretudo, o combate ao desemprego e à informalidade, a alimentação saudável, a moradia digna, o ar que respiramos… Se não há como pensar todas essas questões de forma desvinculada do modo de produção capitalista é porque é urgente enfrentar o próprio capitalismo, que para além de um sistema econômico ou um modo de produção, é uma forma de dominação social.

Recentemente, o presidente dos EUA, Joe Biden, proferiu um importante discurso em que afirmou: “A classe média construiu esse país, e os sindicatos construíram a classe média”. O sindicalismo sendo doce na boca do presidente da “meca do liberalismo” pode ter um impacto no sindicalismo mundial? É hora de refletirmos sobre isso. Eu deixo para o leitor essa reflexão.

Vanessa Patriota da Fonseca é Procuradora do Ministério Público do Trabalho, membra da coordenação nacional do Coletivo Transforma MP e integrante do Comitê Facilitador do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia

[1] Em 2019 o Governo Bolsonaro aprovou 474 novos agrotóxicos e em 2020 aprovou 493. (REPORTER BRASIL, 2021)

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