Um dia depois

Por Maria Betânia Silva 

Boa parte dos brasileiros passou as últimas semanas esperando o dia 07 de setembro de 2021,  para saber o que aconteceria no país, nessa data comemorativa da nossa independência de Portugal.

Essa expectativa foi gerada porque o “despresidente” (minúsculo mesmo),  um homem ensandecido na perversão/ subversão da vida pública e privada, ameaçava ministros do Supremo Tribunal Federal, insatisfeito com as investigações em andamento nessa Corte contra sua pessoa e apoiadores do seu desgoverno,  também esbravejava a ideia de transformar o tal dia 07 de setembro, na realidade, uma data da falsa independência do Brasil, tornada, porém, verdadeira após um século de repetição, no dia ” D” da luta brasileira marcada por posições contra a democracia e, em consequência,  em favor dela.

O “despresidente” que não junta “lé” com “cré” e estupra tanto a  semântica quanto a sintaxe toda vez que abre a boca,  instaurou o paradoxo no país.

Só pra dar uma ideia, ele anunciou e cumpriu com o promessa de  indicar para o STF um nome  “terrivelmente evangélico” num Estado que é laico desde 1889; ao mesmo tempo, passou a acusar o STF de jogar fora das linhas da Constituição e, para coroar a sua existência indesejada, desfilou no dia 07 de setembro num carro com a faixa presidencial verde amarela para uma cerimônia de hasteamento da bandeira brasileira (de cores imperiais e coloniais) o que ressuscitou a lembrança de  que ele já bateu continência para a bandeira dos USA. Portanto, a bandeira que o encanta é aquela que exibe mais estrelas, tanto as que são pintadas no tecido quanto as que lhe servem de broche.

O “despresidente” invoca a liberdade de expressão para perfumar os excrementos verbais que pronuncia e se aproveita desse valioso pilar do regime democrático para boicotar e destruir a democracia;  junto com isso, por conseguinte, desdenha da construção de uma sociedade verdadeiramente independente, duradoura, estável e amadurecida na convivência com as diferenças e na solução dos conflitos que são comuns à vida coletiva.

O dia 07 de setembro chegou. Foi ontem.

E  aí, o que se viu?

Nada que tenha sido bom o suficiente para neutralizar o gosto ruim que já amargava a nossa vida nacional.

País afora, sobretudo em Brasília e em São Paulo, o que se teve foi, de um lado, um vai e vem de ignorância verde amarela, uma turba histérica mergulhada em contradições, gente quase suicida, motorizada ou não;  e de outro lado, gente resistente com a consciência de fazer jus a alguma independência, gente gritando com os ” excluídos” para incluí- los na realização das promessas da democracia liberal, sendo certo que alguns acalentam o sonho da democracia social e, alguns outros, o do socialismo transformador da democracia representativa e formal em uma democracia participativa e material.

O que se viu foi um país dentro de um balão de ensaio, fora da das condições normais de temperatura e pressão, caracterizando um ambiente democrático completamente desestabilizado.

Então, se me perguntarem se o ” despresidente”, candidato a Messias, que traz o apocalipse, saiu forte ou enfraquecido da agenda que ele definiu, aproveitando- se do cargo que ocupa: o de Chefe do Executivo Federal, eu respondo que isso já não interessa. Forte ou fraco o que interessa mesmo é o que nos queremos e o que faremos.

Até porque, convém lembrar, apocalipse só existe para quem acredita em Messias, mas para quem não se deixa levar por profecias,  a vida se faz no dia-a- dia pondo a mão na massa, junto com a “massa”, repartindo o pão que sai do forno diariamente.

Pra mim, o que interessa mesmo é tirá- lo do cargo, o qual, aliás, ele nunca poderia ter ocupado. Havia concorrentes que mal ou bem leram algumas linhas da Constituição. Havia um, inclusive, que dedilha as cordas de um violão com a mesma delicadeza com que lê as linhas da Constituição, construindo harmonias.

Portanto, o recado das urnas em 2018 está mais do que claro agora, não?

Não houve erro de cálculo em contar os votos dados a esse  “despresidente” através da urna eletrônica, que funcionou direitinho. O que houve foi um desprezo pelo futuro do país por gente motivada pelo egoísmo de pensar a vida a partir e em direção ao seu próprio umbigo. Uns apertaram o botão sem refletir, outros o fizeram com convicção e muitos, muitos mesmo acharam que nem valeria a pena apertar botão algum.

Viram agora a importância de um botão? Do botão nasce a rosa e mesmo que ela carregue alguns espinhos nunca pode se confundir com eles. Muitos brasileiros não cuidaram do botão da rosa em 2018, o deixaram secar e hoje ele nos faz sangrar;  o botão seco foi nos transformando num espinho cada vez mais parecido com ele.

Será que agora dá pra entender que a chegada dessa homem sem brilho nos olhos com espuma na boca autorizou o uso do força e não o uso da força do direito?

Será  que deu pra perceber que pra ele o direito é o uso da força? Não há linhas de Constituição pra ele porque linhas são limites e a força atua sempre que os limites são ultrapassados.

Ficou claro agora que com ele, os seus desígnios e os seus delírios, se projetam sobre todos nós e que assim perdemos um pouco da beleza, um pouco do perfume e estamos perdendo todas as pétalas que nos faria desabrochar?

Deu pra sentir que agora estamos todos tendo que extrair forças – não se sabe de onde – para enfrentar a devastação que ele vem provocando, na democracia, nas florestas, nas panelas, esvaziando- as e deixando a todos com fome de vida, de feijão, de futuro e de palavras afetuosas?

Deu pra sentir o tiro de fuzil no estômago embrulhado de ar?

Deu pra sentir que a política é uma dimensão da vida a ser levada a sério para definir os destinos de vida individual e coletiva?

O que fazer agora?

Já que perdemos todas as oportunidades anteriores de mudar o rumo da nossa vida que já não nos eram favoráveis desde 2014, quando a Lava Jato começou a destruir nosso jardim com o discurso messiânico antes mesmo do Messias que chegou em 2018, para completar a tarefa deixada a cargo de um traidor em 2016; já que não fomos em peso no dia 07 de setembro (ontem) para as ruas…já que… que tal se marcharmos no dia 09 de setembro – quando ocorrerá a marcha das mulheres indígenas – em  todos os cantos do país? Que tal, hein?

Sejamos protagonistas das nossas lutas e abandonemos a cadeira de espectadores da nossa desgraça.

Sejamos apoiadores dos povos indígenas que nos dão uma lição de independência na defesa dos seus territórios.

Inspiremo- nos na natureza dessa força ancestral, façamos da nossa voz uma flecha certeira.

Maria Betânia Silva – Procuradora de Justiça aposentada MPPE e membra do Coletivo Transforma MP

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