Universidade pública: lugar de democracia e liberdade

 

Tempos de ameaças à democracia, tempos de ataques à Constituição

Por Cristiano Paixão* no Jota 

Em vários textos publicados neste espaço, temos tratado do fenômeno de desconstitucionalização vivido pelo Brasil nos últimos tempos. O processo teve início em 2014, e foi assumindo diversas formas, por meio da participação de atores políticos integrantes dos três poderes do Estado. Do ataque ao núcleo de proteção dos direitos sociais até a desmontagem interna de estruturas voltadas à concretização do texto constitucional em pontos cruciais como tutela do meio ambiente, combate ao racismo e preservação do patrimônio histórico (https://jornalggn.com.br/artigos/destruindo-por-dentro-praticas-desconstituintes-do-nosso-tempo-por-cristiano-paixao/0), passando pela utilização oportunista do contexto de pandemia para radicalizar o processo de precarização dos direitos sociais (https://jornalggn.com.br/artigos/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao/), verifica-se um conjunto de práticas desconstituintes que, interpretadas em seu conjunto, acarretam o esvaziamento significativo do texto promulgado em outubro de 1988 (https://jornalggn.com.br/artigos/captura-da-constituicao-e-manobras-desconstituintes-cronica-do-brasil-contemporaneo-por-cristiano-paixao/).

Nos primeiros meses de 2021, nova ameaça desconstituinte se faz presente. O alvo agora são as universidades públicas. Alguns atos praticados por órgãos de controle do poder executivo federal ativaram um sinal de alerta na comunidade acadêmica. Professores da Universidade Federal de Pelotas são investigados em virtude de manifestações acerca da omissão governamental em relação à pandemia; professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco é notificada a se pronunciar por conta de opiniões sobre o governo expressas de modo público; um ofício do Ministério da Educação recomenda a vigilância sobre discursos produzidos por integrantes da comunidade universitária.

No dia de hoje, a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, por intermédio de seu órgão de maior representatividade, aprovou uma Declaração sobre a liberdade de ensino. Em um texto articulado e coerente, com o uso adequado dos conceitos e categorias que devem nortear qualquer manifestação oficial de órgãos vinculados ao poder público, a Declaração deixa claro que “a liberdade de ensino não pode ser limitada, condicionada ou abolida por atos de Ministros de Estado e de outros agentes públicos”. A Declaração prossegue afirmando, com propriedade, que eventuais atos praticados contra a liberdade de ensino são inválidos, ofensivos à Constituição e não devem ser obedecidos, considerando as garantias constitucionais da autonomia universitária, da liberdade de cátedra e do direito ao uso da palavra em perspectiva crítica, que é, aliás, inerente à própria razão de ser da universidade (https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/professores-da-unb-prometem-ignorar-atos-do-governo-contra-liberdade-de-ensino.html).

Esse tipo de ataque possui evidente natureza desconstituinte. Como registram as fontes históricas, as universidades e seus atores sociais (alunos, pesquisadores, professores) foram alvos diretos da ditadura militar que se instalou no Brasil entre 1964 e 1985. Integrantes da comunidade acadêmica foram perseguidos, demitidos, torturados e mortos. A sede da UNE no Rio de Janeiro foi incendiada no mesmo dia em que o golpe militar foi desencadeado. Estudantes e professores, para resistir, tiveram que ingressar na clandestinidade. O Decreto-Lei 477 (chamado de “AI-5 das universidades”) aprofundou o arbítrio e a violência praticados contra a comunidade acadêmica.

A UnB foi perseguida fortemente pela ditadura, desde o início do regime dos generais. Em 9 de abril de 1964, mesmo dia em que foi baixado o primeiro dos atos institucionais, Anísio Teixeira, então Reitor, foi expulso, por tropas do Exército e da Polícia Militar de Minas Gerais, de seu gabinete na Universidade. Estava trabalhando normalmente, para manter vivo o projeto humanista e inovador que havia construído em conjunto com Darcy Ribeiro. 12 professores foram presos nesse mesmo dia. O Conselho Diretor foi destituído. Essa seria a primeira de muitas intervenções do regime na UnB.

Como ficou claro pelo Relatório apresentado pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, houve um trabalho sistemático, ao longo de todo o regime militar, para sufocar e reprimir a liberdade que era constantemente exigida por alunos e professores. Um capitão de mar e guerra da Marinha foi nomeado Reitor. Uma Assessoria de Segurança e Informações funcionava na própria Reitoria. Delações, infiltrações e práticas abusivas pela comunidade de informações eram usuais (http://www.comissaoverdade.unb.br/relatorio).

É importante relembrar esses fatos para ressaltar a dimensão libertária, emancipatória e democrática do preceito constitucional que garante a autonomia universitária. Nunca é demasiado lembrar que a Constituição de 1988 representa um ponto de ruptura em relação à ordem jurídica preexistente. Não é por acaso que a tortura (amplamente praticada pelo regime, chegando a atingir dezenas de milhares de vítimas) é considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Além disso, o art. 8º do Ato das Disposições Transitórias estipula um programa de reparação a todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção praticados ao longo do regime ditatorial.

Com isso queremos ressaltar que a vigência da Constituição de 1988 significou, para a comunidade universitária, o retorno à legalidade, à democracia e ao Estado de Direito. E que atos estatais, independentemente de sua origem, que não levem em consideração esses postulados, são nulos de pleno direito. É evidente, nesse contexto, que a mobilização contra as universidades públicas é mais uma etapa das pressões desconstituintes que se reproduzem na sociedade atual, a partir de setores do próprio Estado.

Em resposta a essas pressões, é fundamental resgatar a Declaração hoje aprovada pelo Conselho da Faculdade de Direito da UnB, que, em suas linhas conclusivas, reafirma seu compromisso em respeitar e garantir a liberdade de ensino, “sem ceder um único milímetro a quaisquer pressões de natureza despótica e inconstitucional”. Isso porque, em suas próprias palavras, a Faculdade leva a Constituição a sério, e recomenda a todos que tomem a mesma atitude.

Ao assim se manifestar, a Faculdade de Direito mantém sua postura em defesa da democracia e relembra aos atores políticos do presente sobre a trajetória de todas e todos que lutaram contra o arbítrio e a violência de um regime tirânico. Honestino Guimarães, Iara dos Santos Delgado e Paulo de Tarso Celestino foram alunos da UnB. São desaparecidos políticos, vítimas da ditadura. A geração deles lutou por liberdade e democracia. Que sejam lembrados e homenageados, e que a universidade pública continue a zelar pela observância dos princípios e regras que estruturam o Estado Democrático de Direito.

*Cristiano Paixão é Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. 

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